A obra:
BACHELARD, Gaston. Epistemologia: trechos escolhidos por Dominique Lecourt, professora de filosofia. 2. ed. Tradução Nathanael C. Caixeiro. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1977.
O autor:
De origem humilde, Bachelard sempre trabalhou enquanto estudava. Pretendia formar-se engenheiro até que a Primeira Guerra Mundial eclodiu e impossibilitou-lhe a conclusão deste projeto. Passa a lecionar no curso secundário as matérias de física e química. Aos 35 anos inicia os estudos de filosofia, a qual também passa a lecionar.
Suas primeiras teses foram publicadas em 1928 (Ensaios sobre o conhecimento aproximado e Estudo sobre a evolução de um problema de Física: a propagação térmica dos sólidos). Seu nome passa a se projetar e é convidado, em 1930, a lecionar na Faculdade de Dijon. Mais tarde, em 1940, vai para a Sorbonne, onde passa a lecionar cursos que são muito disputados pelos alunos devido ao espírito livre, original e profundo deste filósofo que, antes de tudo, sempre foi um professor. Bachelard ingressa em 1955 na Academia das Ciências Morais e Políticas da França e, em 1961, é laureado com o Grande Prêmio Nacional de Letras. Bachelard morreu em 1962.
A busca do conhecimento científico exige a eliminação de paradigmas prefixados. As teorias científicas são aceitas quando esclarecem uma categoria de fenômenos e sugerem estruturas de comando ou prognóstico sobre alguns destes fenômenos. A confirmação dessa capacidade valida os conceitos engendrados. Por outro lado, uma teoria científica é abandonada quando superada por outra teoria, que a abranja e a supere. Quando isso ocorre, uma nova etapa é inaugurada na Ciência.
Um filósofo que formou todo o seu pensamento ligando-se aos temas fundamentais da filosofia das ciências "[...] deve esquecer seu saber, romper com todos os hábitos de pesquisas filosóficas, se quiser estudar os problemas colocados pela imaginação poética. É preciso estar presente, presente à imagem no minuto da imagem: se houver uma filosofia da poesia, essa filosofia deve nascer e renascer no momento em que surgir um verso dominante" (BACHELARD, 1978, p. 183).
Há uma gradação progressiva entre as várias filosofias: do realismo ingênuo, passando ao empirismo claro e positivista, ao racionalismo clássico da mecânica racional, ao racionalismo completo da teoria da relatividade até o racionalismo discursivo. As diversas noções têm diferente peso, podendo ser traçado um perfil epistemológico de cada uma delas. É necessária a ruptura entre o realismo ingênuo e a noção científica da coisa.
A abastecer esse pensamento, Bachelard (1977, p. 14) toma como referencial a física contemporânea e afirma que os fenômenos ambíguos da ciência moderna jamais se referem “às nossas coisas”, sendo construções racionalistas nas quais se fundem ação e coisa, objeto e movimento. Metáforas representam os objetos e sua organização representa o papel de realidade. Nesse caso, o hipotético é o nosso fenômeno, porque, diz o filósofo, “[...] nosso contato imediato com o real só vale como um dado confuso, provisório, convencional e esse contato fenomenológico exige inventário e classificação” (BACHELARD, 1977, p. 15). A sabedoria sugere novo sentido ao fenômeno inicial. A priori, não se pode confiar na instrução fornecida pelo dado imediato: ”Nem é juiz, nem testemunha; é um acusado, réu que cedo ou tarde se convence de mentira. O conhecimento científico é sempre a reforma de uma ilusão" (BACHELARD, 1977, p. 15).
Entre as certezas cotidianas e o conhecimento científico há um grande caminho a percorrer, sendo necessário, para alcançá-lo, a superação do senso comum. É inevitável a ruptura entre o conhecimento comum, vulgar, e o conhecimento científico. O progresso da ciência exige orientação num sentido que nada tem a ver com os conhecimentos adquiridos no dia a dia, pois para imaginar, por exemplo, o mundo do átomo, é preciso romper radicalmente com as imagens do conhecimento comum. A descontinuidade entre estes dois níveis de conhecimento é tão explícita, que mesmo a linguagem deve ser modificada, a fim de evitar infecções lutuosas. Por tal motivo, o empirismo é a filosofia que convém ao conhecimento comum. Ao contrário, o conhecimento científico é solidário com o racionalismo.
O senso comum e o conhecimento pré-científico estão ligados ao empirismo, à generalidade, à utilidade, enfim, são conhecimentos superficiais. Por sua vez, o conhecimento científico contemporâneo está ligado a princípios racionais cada vez mais teóricos, mais pensados e construídos a partir de um problema. Neste refrão, o caminho da ciência moderna vai do racional ao real. Inicia-se pela construção teórica abstrata e produz racionalmente um processus experimental. Mas, esse processo mental tem ainda outro alcance: esclarecer o passado da ciência.
A ciência procede por descontinuidade. Cada progresso é uma ruptura em relação a um saber anterior que se pode revelar inteiramente ultrapassado. O futuro de uma ciência não depende do seu passado; a origem de uma ciência não determina o seu futuro. Nesse embalo, o espírito científico procede por cortes relacionados aos obstáculos epistemológicos, que se constituem em qualquer elemento ou processo que, influenciando as concepções e práticas científicas trava, bloqueia ou desvirtua a produção de conhecimentos. São esses obstáculos, as imagens e os símbolos do pensamento ingênuo e do ranço cultural, assim como as aparências sensíveis fornecidas pela experiência espontânea.
A ciência opõe-se absolutamente à opinião. A opinião pensa mal; não pensa: traduz necessidades em conhecimentos. Nada se pode fundar sobre a opinião: é preciso primeiro destruí-la. Este é o primeiro obstáculo a superar. Não é suficiente a retificação da opinião, em pontos particulares, mantendo-a como conhecimento vulgar provisório. O espírito científico proíbe a opinião sobre questões desconhecidas, não formuladas com clareza. Antes de tudo, é preciso saber pôr os problemas, que na vida científica não se colocam por si mesmos. É o sentido do problema que dá vida ao verdadeiro espírito científico. Para este, todo conhecimento dá uma resposta a uma questão. Sendo assim, se não houve questão não pode haver conhecimento científico. Nada surge por si. Nada é dado. Tudo é construído a partir da problematização do mundo real.
Mas, sendo aceitos os cortes epistemológicos, como se dará a evolução da ciência?
A responder esta questão afirma-se que a ciência evolui por mudança de um ponto de vista interpretativo, ou seja, por mudança de paradigma que, a princípio, responde satisfatoriamente às necessidades teóricas e experimentais da investigação. Depois, sua evolução realiza-se no sentido da complicação, da especialização, do esoterismo. O referencial dominante torna-se rígido neste momento e gera resistência à mudança, instituindo-se como ciência normal, possuidora de uma informação detalhada e de coerência entre observação e teoria. Nesta fase, geralmente, não se descobrem grandes novidades, mas começam a surgir anomalias que deixam de ser resolúveis dentro do paradigma dominante. Instala-se, então, uma fase de crise, que pode levar à emergência de um novo paradigma.
Bachelard evidencia o papel e a resistência dos obstáculos epistemológicos, preconizando verdadeira estratégia para seu combate. Denomina-a filosofia do não e marca seu contributo para uma dialética do conhecimento que se opõe a uma ideia deturpada da razão.
No avanço do conhecimento, trocas epistemológicas somente se produzem com a ruptura do conhecimento instituído. O espírito científico é uma retificação do saber. No avanço do conhecimento ocorrerão trocas epistemológicas através de uma distinção inexorável entre o conhecimento proveniente da experiência imediata e o conhecimento científico, decorrente de realidades reconstruídas teoricamente. Consoante o filósofo, cientificamente: “[...] pensamos o verdadeiro como retificação histórica de um longo erro; pensamos a experiência como retificação da ilusão vulgar e primeira” (BACHELARD, 1977, p. 112).
A obra de Bachelard (1977, p. 114) contribui preciosamente para a desconstrução do mecanicismo, da ciência espetáculo, da análise fragmentada, da redução ao simplismo, da noção estática da matéria, à qual correspondem os conceitos deturpados. O espírito científico só vem a lume com a destruição do espírito não científico. Da mesma forma: “[...] deve perturbar o filósofo uma tarefa como a nossa, que situa o conhecimento como uma evolução do espírito, que aceita variações referentes à unidade e perenidade do eu penso” (BACHELARD, 1977, p. 115).
Uma leitura sensível do conhecimento científico, apregoada como necessária, pretende reduzir a experimentação a uma série de leituras de índices e um conceito com essas características bloqueia o conhecimento, não o resume. A arte e a literatura realizam sonhos; a ciência não. A essência do pensamento científico é o estado de contínua revolução, por repousar sobre um passado reformado. É preciso aceitar uma verdadeira ruptura entre o conhecimento sensível e o conhecimento científico.
No novo espírito científico o erro prima sobre a verdade. A tese da verdade evidente deve ser repudiada, por ser o fracasso uma forma de constituição e de avanço do saber científico. Salienta Bachelard (1977, p. 116): “É porque há fracasso que há frenagem da estimulação. Sem esse fracasso, a estimulação seria valor puro. Seria embriaguez [...] a nosso ver, o homem que tivesse a impressão de não se enganar jamais, este homem se enganaria sempre.” Os erros cometidos por distração devem ser diferenciados daqueles solidários de uma estrutura, chamados por Bachelard de erros positivos, cuja correção proporcionará a substituição da estrutura de pensamento.
Isso significa um convite aos cientistas, incitando-os a procurarem nas suas próprias teorias o erro, a falha, o improvável, em vez de quererem a todo o custo fundamentar o verossímil. Se a prova é uma benesse, se se exorta o sábio a fazer tudo para destruir as suas próprias conjeturas, é porque está persuadido de que a descoberta de um erro, ao instruir a própria ignorância, abre ao mesmo tempo o caminho de um novo conhecimento. A ciência não é mais do que uma eliminação indefinida do erro.
Quanto ao objeto em estudo, sua simples menção leva à crença de que se alcançou a objetividade (BACHELARD, 1977, p. 116). Ao ser destacado do mundo sensível, desperta admiração e espanto, causando a falsa impressão de se estar repleto de saber. Porém, a fonte primeira é impura: “[...] a evidência primeira não é uma verdade fundamental.” Maravilhar-se com a simples menção do objeto é fruto de espírito imaturo, pois a primeira observação deve ser crítica com relação à sensação, ao senso comum, à própria prática mais constante, inclusive à etimologia, porque a palavra, que é feita para cantar e seduzir, raramente coincide com o pensamento. Longe de se extasiar, o pensamento objetivo deve ironizar. A objetividade científica jamais será alcançada de forma diversa. À filosofia cabe somente esperar que a poesia e a ciência se complementem, unidas, como dois opostos bem feitos. Poesia e ciência são complementares, devendo ser unidas como dois contrários. Necessário contrapor ao espírito poético expansivo o espírito científico taciturno para o qual a antipatia prévia é uma precaução salutar (BACHELARD, 1977, p. 117).
A pesquisa científica exige a constituição de uma problemática. Na realidade, inicia-se com um problema, mesmo que seja mal proposto. Um objeto sugere vários tipos de objetivação, várias perspectivas, levantando problemáticas diferentes. Isso faz do racionalismo uma filosofia que prossegue; jamais uma filosofia que começa. Por isso, toda experiência sobre a realidade já identificada pela ciência é ao mesmo tempo experiência sobre o pensamento científico. Pretende-se sugerir ao leitor a ideia de uma problemática antecedente a toda experiência que se pretenda instrutiva, uma problemática que se fundamente, antes de se tornar vigorosa, numa dúvida específica, numa dúvida especificada pelo objeto a conhecer. Para Bachelard (1977, p. 119-122) a dúvida deve aplicar-se a um objeto e não apenas ser uma dúvida por si só. A ciência concretiza seus objetos, sem jamais os encontrar inteiramente feitos. Um conceito torna-se científico na proporção em que se torna técnico, em que é acompanhado de uma técnica de realização.
A obra de Bachelard é essencialmente epistemológica e poética, o que não impede a identificação de posições acerca da escola, apontando de forma assistemática para a questão do ensino. Sua preocupação pedagógica frente ao cenário dos problemas científicos em vários momentos se faz presente, fruto talvez da sua própria vivência docente, revelando-se explícita quando afirma se considerar mais professor que filósofo.
A função dos mestres é inquietar a razão, ensinar a inventar, mostrar o que se pode descobrir. Desta forma, o princípio pedagógico fundamental daquele que ensina é: quem é ensinado deve ensinar; quem recebe uma instrução e não a transmite terá um espírito formado sem dinamismo nem autocrítica.
É necessário assumir a necessidade de um ensino científico vivo em que o diálogo esteja presente, deixar o livro para falar aos homens, integrar a ciência na cultura geral através do ensino de um saber científico atual. A decorrer desta pauta, o antigo deve ser pensado em função do novo, o saber fechado e estático deve ser substituído por um conhecimento aberto e dinâmico.
O pensamento científico não é um livro indolente e passivo, mas enérgico, vivo, laborioso; um livro ao mesmo tempo audacioso e prudente, ao qual já se desejaria dar nova edição, antes mesmo que viesse a lume sua edição primeira.