História X Literatura
Após, tanto tempo relegada a uma marginalização no campo científico, a História alcança um status metodológico, oficialmente fundamentada em uma disciplinarização técnico-científica, tendo uma estruturação positivista solidificada no século XIX e consolidando-se no século XX com requintado corpus teoricus.
Talvez pela dificuldade em erigir-se ao patamar científico, a História ainda alimente temores, tendo a Literatura como ameaça à sua forma de linguagem fechada, por isso, muitos historiadores ainda consideram a arte literária como anátema, tomando pra si a missão quase messiânica de transliterar uma possível verdade, empiricamente verificável em um éthos documental.
Como expôs o historiador Durval Muniz de Albuquerque Júnior, talvez o problema entre História e Literatura esteja no sentido de gênero, dicotomizando a primeira como masculinização racional, enquanto a segunda seria feminilização intuitiva, criando uma analogia que possibilita compreender duas esferas da linguística.
Foi o filósofo alemão Friedrich Nietzsche, quem questionou certas padronizações acerca de uma possível realidade, evocando a arte literária, em contrapartida a uma linguagem tida como hermética, enclausuradamente restrita a mecanismos de ordenamento lógico-racional, remontando a uma gênese greco-ocidental, a busca profética por uma verdade emergente, o ideário descartiano que a posteriori sedimentaria o imaginário iluminista.
A História apela para a consciência do fato, ratifica seu poder através da narrativa, empiricamente dada pelas fontes que lhe servem de dados, conquistadora por abarcar uma fenomenologia de ordem pública, dominando o espaço coletivo pela definição sociável de sua estruturação, superestimando a visão em detrimento de outros sentidos perceptivos.
Já a Literatura, adentra o campo da sensibilidade, permite excitar paixões, explora o subjetivismo privado, induz à desrazão, aguçando percepções que extrapolam a idéia de realidade que é contrária ao seu desenvolvimento, tendo em vista a proposta de uma racionalização que alija uma arte revolucionária, uma poiesis clássica suprimida em nome de um imperativo saber.
Saber nada inocente, causa e consequência de relações de poder que permeiam a sociedade, conforme constatação feita pelo filósofo francês Michel Foucault, que também observa o contra-poder ou resistência ao status quo, criando um embate de ordem heraclítica.
Pensando no movimento feminino, a dinamização cultural que os ditos pós-estruturalistas fizeram emergir, a Literatura assume o feminino insurgente, tida como domesticada outrora, agora liberta do sentido privado e alçando o domínio público, deixando de ser um coadjuvante sombrio que era colocado à margem da História analógicamente masculinizante.
Quanto a História, irá atuar no campo político pela permanência em seu estado privilegiado, instrumentalizando uma estratégia de suprimir a concorrência literária, destituindo os privilégios de ordem científica à sua rival e relegando-a a um pseudo-conhecimento, o preconceito que distancia o senso comum de uma dada esfera de conhecimento, vilipendiando o sentido de episteme.
Neste conflito entre gêneros distintos, não se percebe quão próximos estão os objetos conflitantes, pois, assim como homem e mulher, apesar das características de ordem orgânica diferenciadas, possuem uniformidade enquanto espécie humana, com as devidas proporções analógicas, história e literatura também se assemelham ao pensar na linguística que compõe ambas, convergindo em “instrumentos” idênticos, ao pensarmos em quesitos como narrativa, fontes, descrição, gramática etc.
A união proveitosa já averiguada por diversos historiadores e literatos, ou porque não dizer historiadores/literatos, torna perceptível em um primeiro momento o dano causado por tal embate, entretanto, analisado em uma perspectiva foucaultiana, teremos o cenário preciso de disciplinaridade, como da busca por firmar uma dada ordem, tendo como contrapartida o que é suprimido, que deve ser silenciado, o contra-poder que expõe as lacunas na idéia regente de “todo”, que procura dar conta de uma realidade não comensurável.
O terreno da fertilidade emerge no campo de batalha, fazendo aflorar pelo próprio discurso a sua própria negação, o contra-discurso, sua fragilidade é exposta na ânsia de auto-afirmação, renegando o que corrói seus alicerces, utilizando o excluído de forma periférica, já que não pode desvencilhar-se por completo sem destruir a si próprio.
O sujeito histórico, percebe na linguagem contemporânea a sua própria diluição, numa lógica desconstrutivista que escapa ao enclausuramento semântico ou dialético, nas palavras de Michel Foucault, “A ‘dialética’ é uma maneira de evitar a realidade aleatória e aberta desta inteligibilidade reduzindo-a ao esqueleto hegeliano; e a ‘semiologia’ é uma maneira de evitar seu caráter violento, sangrento e mortal, reduzindo-a à forma apaziguada e platônica da linguagem e do diálogo.”(FOUCAULT,1979: 5)
Diante da arte literária, o sujeito-histórico percebe o caráter volátil de uma postura historicizante, cabendo aos coetâneos, pensar em transubstanciar tais campos humanísticos, conscientes da desumanização implícita ao perscrutar esta fenomenologia, com suas possibilidades exteriores ao percebido ou tácitamente próprias, ainda assim perceptíveis, heideggerianamente falando, “o ser só é sendo”.
A Literatura se tornou vital a uma espitemologia da História, possibilitando ao sentido histórico uma crítica a si mesmo, mesmo que leve a percepções a-históricas, pois os fantasmas da historicidade precisam ser enfrentados, saírem do campo mítico-dogmático e aportarem num olhar mais amplo, consciente do papel histórico de representação da morte, conforme exposição de Nietzsche, além da primal necessidade do esquecimento, que o desenvolvimento literário permite acontecer, num campo de criação artística, produzindo um conhecimento liberto por ser uma praxis cotidiana que dissolve a metarrativa.
Desta forma, o sentido ontológico cair por terra em meio a uma trama de representatividade histórica, que percebe-se enquanto hiato entre tantos outros hiatos de uma composição teórico-humanística, conforme as palavras do filósofo francês Jacques Derrida, “...que a essência mesma da presença, se ela deve sempre repetir-se numa outra presença, abre originariamente, na presença mesma, a estrutura da representação. E, se a essência é a presença, não há essência da presença nem presença da essência.” (DERRIDA, 1973: 381)
Referências Bibliográficas:
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. História: a arte de inventar o passado.Ensaios de teoria da história. Bauru, SP: Edusc, 2007. (Coleção História)
DERRIDA, Jacques. Gramatologia. Tradução: Miriam Schnaiderman e Renato Janini Ribeiro. São Paulo: Perspectiva, Ed. Da Universidade de São Paulo, 1973. (Estudos, 16)
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 21. ed. Organização, introdução, revisão técnica e tradução: Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Escritos Sobre História. Apresentação, tradução e notas: Noéli Correia de Melo Sobrinho. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2005.