Uma Abordagem Sobre o “Desvio Social”
A argumentação de Richard Miskolci, visa elucidar questões dicotômicas, dispostas apartir do que denomina “normal” e “anormal”, partindo do pressuposto que a normalidade seria uma construção histórica, visando atender uma moral concebida por valores efêmeros de uma sociedade em dada época.
O ideal explícito, enquanto normatização burguesa, procura atender um padrão idealizado, corroborado por uma ciência coetânea a tais práticas, concebendo um “modelo” de cidadão burguês que seguia as seguintes características: “branco”, heterossexual e burguês.
Procurando metamorfosear um genótipo oriundo de determinada classe, desqualificando com o epíteto de anormal ou inadequado ao “comum” ou que diferia do padrão pré-definido, com intuito de disciplinar os não-padronizados, adequando-os à regra.
Auguste Comte surge criando uma amálgama entre a Medicina e a Sociologia, desenvolvendo uma argumentação que possuía como parâmetro, níveis de desenvolvimento social associados a questões de ordem patológica.
O próprio filósofo francês, Michel Foucault, conceberia o bio-poder, observando na sociedade burguesa uma logicidade de dinâmica social atrelada a um sistema medicinal, possibilitando análises e disciplina de corpos , além de classificação e aplicabilidade de lógicas dedutivas.
A psiquiatria viria reforçar a argumentação burguesa, observando o que posteriormente denominaria “degeneração”, tendo como mote a influência sexual como resistente ao ideário burguês familiar, onde as crianças eram responsabilizadas por atos degenerativos dos pais, tendo como exemplo o incesto, justamente por ações que supostamente seduziriam os tutores, podendo mencionar a prática masturbatória associada a algo nefasto neste aspecto.
Cabe salientar que a burguesia, amparada pela psiquiatria na busca pela cura da degeneração infantil e o compromisso em formar o “bom burguês”, associava as mesmas práticas de classes menos abastadas financeiramente, não como patológicas, mas sim como decorrência de uma ilegalidade paternal de atos impudicos, cometidos em detrimento da integridade dos filhos, cabendo regulamentação jurídica com penalidade de coerção física, se necessário.
O próprio Sigmund Freud é mencionado por Eric Hobsbawm, como atendendo a uma demanda patológica burguesa, criando uma transformação de ordem estrutural em uma sociedade, que fazia emergir uma moralidade atrelada e respaldada por uma ciência.
Émile Durkheim criaria uma argumentação que unia ciências naturais e ciencias sociais, fomentando uma nomenclatura com conceitos como “sociedade orgânica”, que procuravam evocar uma dualidade entre áreas distintas da ciência, surgindo, a posteriori, teorias com viés excludente, reforçando o ideário burguês, tendo como exemplo a pseudo-ciência, denominada eugenia.
A eugenia surge como lógica discursiva, que professava uma viabilidade de normalidade, com possibilidade de detectar “aberrações” que fugiam a padronização pré-determinada. Um dos teóricos em destaque, Gobineau, influenciaria a sociedade, enaltecendo atributos do denominado “homem branco”, salientando os malefícios dos que se afastavam deste modelo, necessitando uma afirmação enquanto genealogia, aos moldes aristocráticos de outrora, criando não apenas a necessidade de pertencer ao ideal, mas também de apontar os que se distanciam deste estereótipo, como herdeiros de uma degeneração que deveria ser extirpada do meio social.
Os degenerados, agora vistos como incorrigíveis, por sua herança genética, se tornavam párias de um ideal social burguês, contrários ao “bem social”, o que favoreceu argumentos de pseudo-cientistas com exaltações racistas, etnocêntricas, xenofóbicas, fomentando a segregação social, o que posteriormente alimentaria governos facistas.
Os intelectuais brasileiros, adotaram em dado momento o discurso da degeneração, cursos como o Direito e a Medicina disseminaram o argumento, ganhando força no meio acadêmico, influenciando os substratos sociais pelo respaldo “pseudo-científico”, tendo como consequência, a tentativa de erradicar tal “anátema da sociedade”, com o incentivo do chamado “branqueamento”. Na própria Argentina, o branqueamento foi aplicado de forma violenta, numa tentativa neurótica de adequação ao ideário burguês eurocêntrico.
A Medicina em sua teorização, assume o papel outrora relegado à religião, onde o pecado tornara-se algo de ordem patológica, o “normal” se torna o caminho da “retidão”, onde aquele que segue o padrão seria coroado com a glória social, alcançada através do sucesso econômico, parâmetro maior deste modelo social, enquanto os degenerados estariam fadados ao fracasso e corrupção.
Friedrich Nietzsche em sua “Genealogia da Moral”, expôs a diferenciação entre o que qualificou como “senhor” (capaz), e o “escravo” (inapto), demonstrando uma analogia à associação degenerativa, interligada a uma genealogia corrupta relegada às gerações advindas, apresentando posições distintas entre classes díspares, desenvolvendo um processo cármico que resulta em uma herança maldita aos descendentes.
Pode-se até mesmo listar uma estruturação do ideário burguês: onde em primeira instância, apareceria a preocupação em disciplinar a criança, responsável por carregar a herança burguesa; num segundo momento, a mulher é focada pela representação da ordem doméstica e responsabilidade da herança genética; tendo como terceiro momento, o homossexual, considerado uma inversão da natureza sexual.
O ato sexual é diferenciado entre instinto e reprodução, uma herança da tradição judaico-cristã, tornando o prazer um vício e por consequência, longe da “retidão” almejada.
Michel Foucault em sua “História da Loucura”, demonstra a necessidade em retirar do convívio público os inadequados a “boa conduta”, apresentando o aprisionamento dos denominados “loucos”, tornando patente os parâmetros da construção moral de uma sociedade, expondo seu caráter efêmero em determinar o que seria normal ou anormal, remetendo ao dilema exposto por Machado de Assis em seu “O Alienista”.
Os anormais representam o poder de resistência è normatização, extrapolando a ordem vigente, criando hiatos apartir de sua própria conduta, em contrapartida, legitimam o discurso moralista, que os utiliza como exemplo marginal de contra-poder, que deve ser confrontado para imperar a “harmonia social”
Portanto, pode-se observar a ciência, como parte do processo de construção moralista da sociedade, ou mesmo classe, legitimando o status quo, embasado por um discurso técnico, visando disciplinar as contigências sociais em vista de interesses pontuais.
Referência Bibliográfica:
MISKOLCI, Richard. Reflexões Sobre Normalidade e Desvio Social. In: Estudos de Sociologia. Vol. 13. Araraquara – SP: UNESP, 2003. p. 109-124.