A “Boa Sociedade” do Brasil Império
Observa-se, segundo Lilia Moritz Schwarcz, na segunda metade do Século XIX, o desenrolar de conflitos entre dois grupos políticos antagônicos, intitulados Luzíadas (liberais) e Saquaremas (conservadores), onde discute-se questões sobre uma monarquia, de certa forma decrépita, além de uma gênese embrionária republicana, tendo em vista certa predominância quantitativa conservadora.
Os Saquaremas defendiam o tráfico de escravos, tendo em vista grande parte dos mesmos serem “traficantes”, o que favorecia a apologia ao discurso escravista, quanto aos Luzíadas, pensando em uma comercialização influenciada por ideais liberais que impregnavam a Europa na época, eram contrários ao tráfico.
A Inglaterra surge neste contexto, destacando-se com uma sumária proibição ao tráficos de escravos, por conta do prejuízo financeiro causado a economia inglesa por tal prática, que perdia um “potencial de investimento” em detrimento das práticas escravistas. Levando em consideração, que a postura inglesa minou o tráfico externo, reduzindo de forma acentuada a prática dentro do território brasileiro, por restringir o número de escravos, pela escassez de novos “produtos” no mercado consumidor, ainda que tenha permanecido a prática internamente, com a permuta dos “bens” já possuídos.
A guarda nacional surge como forma de inibir e coibir as práticas do tráfico escravista, assim como, posteriormente, iria implantar-se a Lei de Terras com delimitações a imigração, não podendo desconsiderar o desespero dos senhores de escravos, que foram solapados pela proibição do tráfico em uma época em que a produção de café estava no auge.
Tal série de medidas, seriam consequência de um processo que estava desenvolvendo-se, ou seja, proibição do tráfico, alta da produção de café, necessidade de mão-de-obra, vinda de imigrantes que viria suprir a demanda e a Lei de Terras, visando conter a onda imigratória, além de delimitar as propriedades privadas, possibilitando à Coroa portuguesa apropriar-se das “terras de ninguém”, onde a posteriori, seriam inseridos os imigrantes.
Uma “elite” econômica em ascendência, sem possuir a disponibilidade de comprar escravos, procurou outra forma de consumo onde pudesse empregar o capital acumulado, o que possibilitou a França, que era considerada um ideal de capital-modelo, ao mundo civilizado da época, por seu esplendor, tornando-se referencial para outro ideal difundido, o de “boa sociedade”, inflamando a elite brasileira por uma ansiedade em consumir os produtos importados franceses e reproduzir no Brasil o modelo francês tão sonhado.
Tal ostentação cosumista, beirava a futilidade em diversos momentos, ao adquirir uma excessiva quantidade de produtos importados, inclusive importando-se o estrangeirismo linguístico, criando um processo de aculturação. Autores contemporâneos à época relatam irônicamente episódios de tais descalabros: “Martins Pena teve algumas de suas comédias encenadas nesses teatros e deixou, por meio da fina ironia, testemunhos importantes sobre hábitos e modismos da época. As futilidades da corte e seu afrancesamento estão presentes em várias obras do teatrólogo.”(SCHWARCZ,2002:112)
A famosa rua do Ouvidor, aparece como grande centro comercial elitista deste período, com seus produtos disputados nas luxuosas lojas pelos membros da “boa sociedade”. Sociedade idealizada que tentava legitimar a utopia através de uma transformação comportamental que simulava trejeitos, hábitos e se travestia com indumentária “fina”.
A sociade das aparências se vangloria, a partir de um status construído, onde certos critérios de ordem simbólica passam a servir de parâmetro, criando inclusive, uma diferenciação honorífica que perpassa um ordenamento estamental, embora seja notório interesses particulares sobrepondo-se aos públicos, embora necessitando da esfera pública para legitimação daquilo que deseja demonstrar ser, um “bom cidadão”.
Entretanto, um fator patente, dificulta a dissimulação da “boa sociedade”, a grande quantidade de “negros” e “mestiços” que circulavam pelas ruas, pois o fim do tráfico e posteriormente da própria escravidão, fez emergir uma quantidade considerável de ex-escravos “semi-libertos”, por estarem compondo a grande parcela da população e também mensuráveis enquanto cidadãos, criando um contraste em relação ao ideal de “civilização modelo”.
Fica evidente a segregação, tanto pelas diversas tonalidades epidérmicas, quanto pelas distinções em relação aos espaços de circulação, assim como os bens adquiridos conforme o poder aquisitivo de renda. Também percebe-se outros contrastes, como o fator ambiental no qual as vitrines luxuosas, disputavam espaço com latrinas expostas, perfumaria francesa em oposição aos degetos humanos, expostos a céu aberto nas avenidas onde os cidadãos transitavam, sem mencionar a indumentária, que procurava resistir a diferenciação de sua origem européia em relação as intempéries tropicais.
Como fator legitimador da aculturação adotada, temos os substratos da sociedade reproduzindo o modelo elitista, o que não espantaria ver ex-escravos desfilando com perucas e tantos outros bibelôs que os tornariam também “nobres”, tornando hegemônico o ideal de “boa sociedade” enquanto meta.
Referência Bibliográfica:
SCHWARCZ, Lilia Moritz. As Barbas do Imperador. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.