A Moral Burguesa (Século XIX)

A moral burguesa apresentada por Erich Hobsbawm, pode no mínimo ser caracterizada como “não muito clara”, por seu caráter contraditório em meio a certas etapas processuais concernentes à época analisada.

Primeiramente, cabe ressaltar uma meta, caracterizada enquanto “quintessência capitalista”, onde o burguês atuava em certas esferas político-econômicas como o “senhor”, “predador”, tendo como parâmetro uma lógica de mercado hobbesiana, ou seja, competitiva, voraz, desmedida em certos aspectos, objetivando atingir sua meta, nos mais requintados moldes maquiavelianos, vulgarmente expostos no axioma: “os fins justificam os meios”.

Entretanto, o ideal burguês não conseguia obscurecer certas “tradições” que o mesmo possuía enquanto discurso, com a funcionalidade de renegar tal tradicionalismo, demonstrando uma patente contradição entre o que se “prega” e o que se faz. Cristalizava-se uma prática comportamental ambígua, onde esferas conflitantes regimentavam uma permuta entre relações dissonantes.

O burguês definia a família como seguridade em relação aos ideais liberais tão incertos, flutuantes, onde observa-se tamanha alternância de status social, salvaguardando a plasticidade do mundo econômico competitivo.

No entanto, a sociedade burguesa contradiz a lógica econômica e esbanja ostentação, tendo como referência a ânsia em possuir, necessitando não apenas determinado acúmulo de capital, mas demonstrar suas posses através de extravagâncias na esfera privada, procurando um sentido extra-material. Os objetos adquiridos passam a moldar toda uma caracterização decorativa, tornando similar a conduta dos que dispusessem de tais “privilégios”, fortificando a meta material de uma classe.

Deve-se levar em consideração, que apenas a matéria, não conseguia suprir as aspirações burguesas, sendo necessário certos princípios que denotariam um sentido transcendental. Assim, as artes precisavam ser expostas, os objetos trabalhados manualmente (artesanalmente) teriam um valor além de uma produção serial, mecanizada. Os adereços comporiam um cenário que projetaria as aspirações burguesas, atendendo uma necessidade extra-corpórea ou espiritual, embora o “espírito burguês” esteja atrelado a matéria.

Outro ponto a ser destacado é a figura feminina, a mulher entra em cena, observando seu papel fundamental na ordenação doméstica, criando a imagem da “lady”, que na esfera patriarcal familiar, segue uma hierarquia que a priori, seria um contrasenso ao ideal burguês, demonstrando seu grau de influência na relações de poder e exercendo “poder de mando” na esfera privada, sendo subordinada ao marido, o “chefe” da casa.

Temos uma classe média emergente, ainda sendo diagnosticado, com maestria, por Hobsbawm, que a condição de alternância de classe, estava diretamente relacionada a condição de possuir empregados. A classe média iria se destacar da classe trabalhadora por possuir “condições materiais” que permitissem possuir empregados.

A família burguesa possui o ideal puritano de uma moralidade anômala aos ideais de ordem econômica, com a família não podendo ser aviltada, degenerada, necessitando outra esfera de atuação, que não fosse nociva a sua moral ilibada.

O jovem burguês, enquanto solteiro, sem ter regimentado uma estrutura familiar, poderia usufruir de certas “liberdades”, no que se refere a relacionamentos amorosos, o marido, compromissado com a moral puritana, apenas executava certas práticas de forma velada, mesmo sendo percebido em suas ações pela sociedade, deveria evitar comentários a respeito ou manifestações públicas que expusessem tal “degeneração”, o que justifica a disseminação da prostituição, por exemplo.

Percebe-se não uma hipocrisia, por não haver premeditação nas relações, apenas um fator comportamental patente, em meio ao desenvolvimento de uma moral burguesa contraditória por natureza. Tal comportamento velado, pode ser percebido no campo material-decorativo-burguês, onde observa-se as mesas expostas com suas pernas cobertas, como as mulheres e seus trajes confeccionados a demonstrar apenas o que fosse concebido enquanto necessário. Vale ressaltar que a moral burguesa não compactuava com a promiscuidade, sendo inclusive castradora e excludente aos que se deixassem envolver por prazeres.

O prazer, sendo relacionado com certa “degeneração”, uma paixão (pathos), ou seja, patológico, contrário ao ideal puritano que limitava o “vício”. O burguês deveria ter, ou pelo menos demonstrar ter, o controle sobre si, “domando” comportamentos que o desprestigiassem.

A tradição familiar chega ao ponto de favorecer grupos consanguíneos, aspirando um modelo aristocrático, condicionado por relações econômicas. Hobsbawm cita os denominados “clãs”, onde o casamento primaria pela família e ao mesmo tempo o favorecimento do acúmulo de capital entre famílias com certa paridade econômica, inclusive com permuta de propriedades e mulheres (também tornadas “objetos” de troca do burguês em uma relação matrimonial).

A dinâmica burguesa demonstrando sua forma volátil de desenvolvimento, sendo restrita por instituições fortalecidas contraditoriamente por uma moral conservadora. As famílias comporiam corporações exclusivistas, agregando membros conforme critérios de associação econômica.

Os ideais burgueses afetaram os diversos substratos sociais, ao ponto de classes emergentes assumirem uma postura semelhante, como forma de introjeção ao padrão ideal almejado. As classes trabalhadoras que emergiram em uma condição de classe média, assumiram uma postura consumista, ostentando possuir empregados como forma de demonstrar sua alternância social.

As próprias “regras de etiqueta”, normatizações de conduta, estruturação educacional, hábitos relacionais, perpassam pelo ideal burguês. O burguês passa a ser visto como meta, aquele que possui por ter sido capaz, senhor, dominante, não entregue aos prazeres viciosos (degenerados), nem entregue as paixões mundanas, tendo aspirações “elevadas” e destacando-se enquanto “superior”, tendo seu ideal exaltado, inclusive por teorias biológicas de cunho evolutivo, como forma de moldar uma “espécie superior”, o “bom” (capaz), tendo em contrapartida os “incapazes”, “inaptos” ao desenvolvimento, dependentes e subservientes, compondo o “não-ideal”.

Assim, conforme exposição do auspicioso historiador, Erich Hobsbawm, a burguesia, de fato, não dirigia a sociedade, por ter seu campo de atuação limitado, sendo desprovido em diversos momentos do controle político, entretanto, é inegável o seu papel hegemônico em relação ao ideal disseminado, legitimado pelas diversas esferas sociais, outorgado como um legado “não muito palatável” às gerações que viriam a posteriori.

Referência Bibliográfica:

HOBSBAWM, Erich. A Era do Capital. 12ª. ed. Tradução: Luciano Costa Neto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2007.