Ritos Fúnebres No Brasil Império

No que se refere aos ritos fúnebres no Brasil Império, destacam-se certos aspectos referentes a uma estratificação que nem mesmo a morte conseguiu conter.

A morte, observada enquanto ruptura, uma desordem em relação ao cotidiano manifesto, racionalizada por concebermos sua existência, poderia remontar a épocas longínquas na história humana, desde o fenômeno das festividades fúnebres dionisíacas na Grécia Antiga, tendo como parâmetro certa gênese da cultura ocidental, procurando fomentar uma catarse nos participantes que procuravam reintegrar-se a ordem cotidiana, através de um extravasamento das emoções diante do lamento fúnebre.

Percebe-se que as festividades fúnebres eram de boa monta aos vivos, sendo relegada posteriormente a diversas outras sociedades ao longo do tempo, que procuravam na hora da morte dos que lhe eram próximos, o resgate de uma tentativa de equiparação social. Outro fator evidenciado - observado também no texto de João José Reis que trata do Brasil Império no Século XIX -, seria a reintegração das desigualdades sociais que o ato ritualístico fomentava, tendo em vista a pompa estimada nos rituais, inclusive pela quantidade de pessoas que acompanhavam os cortejos, sendo fator primordial para demonstrar o apreço pelo finado.

O cortejo na Bahia do Século XIX, contava com regras de participação que valiam para qualquer um dos presentes no momento da procissão, inclusive considerado como mau presságio a não participação, tendo como consequência a própria difamação no seio da sociedade.

Com intuito hipotético de subsidiar os ritos de escravos e menos abastados financeiramente, a Santa Casa assumiu o monopólio das tumbas, cobrando pelo transporte do defunto no trajeto percorrido.

Também pode-se destacar em relação à pompa fúnebre, a participação clerical nos velórios, status conseguido por certa constatação aritmética, ou seja, a quantidade de padres que prestigiavam o finado, somado a custas extras por sacerdotes excedentes enviados para atender caprichos de familiares do defunto. O enterro dos escravos também passaram a contar com a presença de sacerdotes, normatizando tal “adereço” ao rito fúnebre.

A participação de sacerdotes também possuía caráter “extra-corpóreo”, com intenção de redimir pecados, sendo a quantidade de padres um fator direto relacionado a expiações, o número aumentava por exemplo, com o aumento da faixa etária, o que pela lógica levaria a presumir que por ter mais vivido, mais pecados teria cometido, ao contrário dos velórios infantis que não contavam com a presença dos “santos homens” por presumir uma idade prematura de pecados.

Outra característica tida como atípica, podendo ser observada na cultura ocidental, seria certa respulsa em relação ao suicídio, sendo o velório de um suicida realizado de madrugada, velado, procurando fugir aos olhares do grande público, sem contar com a participação de sacerdotes, cujas religiões eram unânimes em reprochar tal ato.

Outro ponto de destaque foi a efetivação das irmandades em relação ao ritos fúnebres, passando a organizar os enterros, estabelecendo regras pra seus membros, como a participação no enterro de qualquer um dos membros falecidos, com pena dos que não comparecerem de não serem também prestigiados em seu próprio velório, não se aceitando nem mesmo a justificativa de não comparecimento por falta de conhecimento do fato, tendo em vista a divulgação exapansiva e o compromisso dos membros em informar-se sobre os acontecimentos.

As irmandades vieram coibir o monopólio da Santa Casa, os escravos também fundaram suas próprias confrarias para uma organização em meio a atual conjuntura. Entretanto, ainda existia o monopólio das tumbas pela Santa Casa, prática coibida com a inclusão dos caixões, conforme reivindicação das irmandades de escravos.

O carro funerário também passou a fazer parte de tal cenário, diminuindo o desgaste no trajeto do cortejo, além de realimentar a disparidade social. No entanto, o carro funerário não excluía o desconforto causado pela discussões acerca do caixão, embora este tenha sido introduzido com intuito de socializar as práticas fúnebres, excluindo os famigerados banguês(1), tão repudiados pelos escravos. A pompa passou a fazer parte da ornamentação dos caixões, com apetrechos importados para aumentar o “galmour”.

Outro elemento dramático que aparece nos ritos fúnebres é a utilização de pessoas pobres como remição de pecados, que teriam sido cometidos em vida pelo defunto, Inclusive, os pobres recebiam gratificação pecuniária para incentivar sua participação a tais rituais, posteriormente introduziu-se pessoas com deficiência física e outros infortúnios que denotavam maior piedade.

Curiosidade averiguada, pode ser constatada nos relatos de enterros realizados nos moldes dos rituais africanos, mesmo com a forte influência da Igreja católica, os ritos africanos resistiram ao processo de aculturação, ocorrendo até mesmo certo sincretismo entre rito cristãos e africanos. Uma sociedade tradicionalmente escravista, torna notório o aspecto segregacionista que também eclode nos ritos funerários.

Mesmo com as restrições da Igreja, as festas adentravam a madrugada, chegando os batuques e danças até a porta das igrejas, embora não transpusessem tais demarcações, evidenciando até onde a tolerância era aceita.

O declínio das irmandades foi constatado em consonância à chamada cemiterada, denominado processo marcado por um período de revoltas na época.

Outro fenômeno exótico ero o funeral fictício, que poderia se fazer através de uma representação de um morto ausente, como no caso do Imperador, onde todo o Império manifestava os pesares pelo ilustre finado, embora o defunto estivesse em local específico, denotando ao mesmo um adjetivo onipresente. A segunda forma de ritual fictício consistia em fazer o ritual fúnebre de uma pessoa em vida, como o ato de repúdio a certa autoridade, onde se dramatiza um enterro em forma de protesto.

Tais práticas pululavam pela sociedade, manifestada nos substratos sociais que procuravam reproduzi-las, almejando certo prestígio em meio a prática das relações sociais. Também podendo observar práticas senhoriais manifestas através dos ritos fúnebres, onde cada grupo possui sua disposição em um cenário tão adverso.

Mesmo os que solicitavam, talvez por certa introjeção de certos princípios cristãos, que fossem enterrados sem pompa, tinham seu pedido negado post mortem, devido a necessidade dos parentes demonstrarem em vida certa conduta de normatização social.

Conclui-se que no fenômeno ritualístico da morte, o que menos possui crédito é o fator fúnebre em si, talvez por ser evidente e não precisar de reafirmar-se, serve apenas como incentivo a certo frenesi diante de tal ruptura, enquanto os participantes procuram através dos atos pomposos e de outra espécie, retornar ao cotidiano, minimizando a perda, reproduzindo conflitos sociais, unindo vida e morte em exaltação a um rito de passagem.

Notas:

(1)Refere-se a certa mortalha que envolvia o defunto para transportá-lo, de forma desajeitada, ficando exposto o cadáver aos olhares vulgares, o que era considero ultraje.

Referência Bibliográfica:

REIS, João José. A Morte é uma Festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX, São Paulo: Companhia das Letras, 2004.