Henfil na China (1978)
Imagine um lugar onde as pessoas não têm roupa de sair. "Em casa ou na rua usam calças largas, camisas chinelos e bermudas. Com a mesma roupa vão para o trabalho ou para o cinema". Um país onde impera a ditadura do proletariado e não da moda. "E onde a linha é Mao e não Dior". Nas ruas um operário vestido de operário é mais respeitado que um soldado vestido de soldado.
Não existe imposto de renda, carteira de identidade, impressões digitais e nenhum documento burocrático. Não tem polícia, serviço secreto, rádio patrulha e nem ivestigadores. Todos os gastos dos estudantes são pagos pelo Estado, e os jovens têm um único objetivo: se formar intelectualmente para servir ao povo.
Nas casas, em vez de passarem horas em frente da TV, as famílias estudam obras de Marx, Lênin e Engels. E sabe quanto é a divída externa desse lugar? Nada. Não devem um centavo aos delinquentes do capital financeiro, país, banco ou o que for. Qualquer coisa que é produzida é para ser distribuída entre a população de 900 milhões de pessoas. Assim, ou 900 milhões têm ou ninguém tem.
Dentro das fábricas os operários não trabalham só mecanicamente. Eles cursam universidade, têm ainda uma biblioteca, assistência médica, dentistas, oftalmologistas e algumas possuem até centro cirúrgico. "Não se nota um traço mais significativo de qualquer cultura estrangeira. E o que tiver, foi tão mastigado que perdeu a sua origem alienígena". Não se vê nenhuma casa, nenhum edifício melhor que o outro. Logo, todos moram igual. Nada de bairros chiques ou um prédio fumê. Tudo naquela simplicidade.
Difícil de imaginar um lugar assim não é mesmo? Pois fiquem sabendo que ele já existiu. E quem constatou isso foi o cartunista, jornalista, escritor e humorista Henfil, que teve a oportunidade de visitar a China de Mao antes da invasão da Coca-Cola e do MacDonalds.
Depois dos anos mais negros do regime militar, em julho de 1977, o Brasil já estava caminhando lentamente para a abertura democrática e foi quando Henfil decidiu fazer essa viagem à China. Pensava ele que estava embarcando em uma épica aventura clandestina, cruzando fronteiras na calada da noite, se esfolando em arames farpados, de peruca, documentos frios, despistando a Interpol, a CIA e o FBI. Pois o cartunista teve a maior decepção quando soube que a China Comunista tinha embaixada no Brasil e em Brasília se tirava visto de entrada.
Com seu humor ferino que não deixa escapar nada, Henfil descreveu essas e outras experiências (como as já citadas no início da resenha) no livro "Henfil na China", lançado em 1978. O escritor relata que seu intuito principal, era encontrar um lugar que ainda não tivesse sido multicionalizado. "Por causa das multinacionais, todas as cidades do mundo têm a mesma cara. Toda gente vestida de blue-jeans, andando de Volks ou Ford. Fumando Marlboro. Morando em edifícios padrão New York. Tomando sua pepsi e comendo seu hot-dog em drugstores". Ele esperava encontrar na China um povo com personalidade própria.
E foi exatamente isso que Henfil encontrou, cerca de vinte e oito anos depois da revolução comunista liderada por Mao Tsé-Tung em 1949. Por acaso alguém já viu uma dona-de-casa brasileira discutindo os problemas do capitalismo, sua tese, sua prática? Pois na China de Mao, "todo mundo lê, relê, estuda e discute até cair duro o marxismo. Das crianças aos velhos, do camponês ao funcionário do Estado, operários, lixeiros, donas-de-casa, todos, todos lêem Marx".
Outro fato curioso descrito por Henfil, foi um abrigo atômico abaixo de Pequim. "São três andares de abrigo atômico subterrâneo por toda a China, debaixo de cada cidade. O primeiro andar está a dois metros do solo, o segundo a oito e o terceiro a vinte metros". Esse abrigo tem por finalidade resistir a guerras e à ataques atômicos. Segundo o jornalista, a maior prova por que passou o abrigo foi em julho de 1976 em um terremoto. No solo caíram milhares de casas, mas nos abrigos nem uma rachadura se viu.
Infelizmente essa sociedade extremamante cooperativa onde todos os 900 milhões de chineses tinham quarto, cama, comida, escola, medicina, trabalho, creche, luz, água, esgoto, hoje já não existe mais. Há pouco mais de quinze anos, a China escancarou de vez suas portas para a disputa canibal do sistema capitalista. O resultado disso, foi o aumento do número de pessoas que vivem abaixo da linha de miséria.
Atualmente, cerca de 29 milhões de pessoas sobrevivem com menos de US$ 77 dólares por ano na China. E, em um lugar onde quase não existiam mendigos, hoje em dia, se tornou quase impossível de não serem percebidos. Em qualquer cidade chinesa, grande ou pequena, eles estão jogados aos montes pelas ruas do país.
Henrique de Souza Filho, ou Henfil como era conhecido, nasceu a 05 de fevereiro de 1944, em Ribeirão das Neves - Minas Gerais, e cresceu na periferia de Belo Horizonte. Ele morreu no Rio de Janeiro, em 04 de janeiro de 1988, com 43 anos.
Era hemofílico e contraiu Aids através de uma transfusão de sangue, mas sempre teve uma saúde bastante delicada, assim, como seus dois irmãos (Herbert e Francisco Mário ) também hemofílicos. Além deles, Henfil tinha mais cinco irmãs.
Foi embalador de queijos, "boy" de agência de publicidade e jornalista, até especializar-se, no início da década de 60, em ilustração e produção de histórias em quadrinhos, tornando-se conhecido nacionalmente, a partir de 1969, quando passou a colaborar no "Pasquim", lançando em 1970 a revistinha "Os Fradinhos", ou apenas "Fradins". Suas tiras foram posteriormente divulgadas em vários países, do mundo sob o título "The Mad Monks", mas a experiência durou pouco, pois seus personagens foram considerados muito radicais.