“Agora é que são elas” (1986) -Paulo Leminski
Para quem remeteu esse título àquela novela da Globo que tinha o mesmo nome, pode esquecer, o livro do escritor paranaense Paulo Leminski, não tem qualquer tipo de semelhança com esse folhetim romanesco global.
Os pegajosos redatores de Roberto Marinho, sem criatividade nenhuma e inertes ao pensamento, chuparam sem dó esse nome criado por Leminski. E mesmo que a família tenha liberado o direito de uso, eles deveriam ser processados por roubo e “envergonhamento” da obra perante seus leitores.
"Agora É Que São Elas" traz fortes elementos biográficos do cotidiano marginal em que vivia o autor. “Me levantei, à procura de alguém conhecido, diante de mim, o desconhecido oeste selvagem, infestado de ursos e índios antropófagos, nenhum amigo, nenhuma amiga, vozes estranhas, sotaques dissonantes. A cada minuto que passava, mais aumentava meu medo diante daquele rato que me roia as entranhas, pólo-ártico na boca do estômago, meu velho e querido amigo, enfim, um amigo, meu verdadeiro amigo, o pavor”.
Os palcos de suas narrativas, são quase sempre, os butecos curitibanos, onde passou a maior parte de sua breve existência, interrompida por uma cirrose hepática aos 45 anos.
Durante essa narrativa, Leminski se vê o tempo todo numa festa, onde acaba se envolvendo com Norma, a filha de Propp, seu professor e analista. Mas, se lermos nas entrelinhas do cotidiano surreal leminskiano, percebemos que essa simples festa, é na verdade, o prazer da vida, de onde ele era convidado a se retirar toda vez que estava no ápice de seus momentos mais tranqüilos.
“Quando eu menos esperava, lá vinha o nome estragar o vôo de um belo momento, como uma pequena noite que caísse, de repente, dentro de um meio-dia de domingo”.
As palavras conservadoras de seu professor, que vivia podando suas potencialidades revolucionárias, são uma reprodução fiel da mesquinharia que domina a humanidade. Em especial, aquela que condena ao ostracismo todos os que tentam romper com nossas arcaicas estruturas. “Não tente melhorar o mundo, você só tornaria as coisas piores”, lhe dizia Propp.
Norma, por quem ele erradamente se apaixonou, é na realidade, o fruto dos prazeres mais fúteis da vida mundana, do qual ele passa o tempo todo lutando contra, tentando colocar a razão e os “céus da sabedoria” em primeiro lugar. Entretanto, Leminski não esconde as fraquezas do homem diante da carne, principalmente se a procedência for de um corpo feminino.
“E Norma? Cadê Norma? Sua ausência grita nesta foto como o mais agudo Ahhh que os olhos humanos já ouviram. Quando consegui estabilizar minhas emoções e atingi aquele estado meio neutro, meio mecânico, que os carros exigem dos seus motoristas, algo entre o sono e a extrema vigília, nesse momento, a tempestade caiu. E veio com tudo. A figura de Norma se destacava como uma massa de amnésia. Devia estar muito distraído quando fiquei vidrado nela”.
Quando Leminski percebe que seu amor por Norma não passa de carência e atração física, começou a refletir. “Não era grande coisa. Mas nos vimos coisas um no outro, e a besteira estava formada. A gente se foi a primeira vez numa porção de coisas. As pessoas tendem a atribuir virtudes mágicas às primeiras vezes. Do pai ela herdou algumas coisas: o absoluto desprezo pelas opiniões alheias, a precisão com que atingia seu olho na primeira porrada e a certeza de estar sempre com a razão”.
“Nem sei, aliás, se cheguei a estar apaixonado por Norma. Afinal. O que é que significa isso? No fundo o amor é invenção do coração da mulher, que ela tenta vender para o primeiro que aparecer e o seguinte, e o seguinte, e o seguinte. E assim por diante até aquela cena de sangue num bar da Avenida São João. Quase cheguei a pensar que amor era apenas aquilo. Uma coisa lésbica, lingüística, deglutiva”.
É necessário ressaltar também, a sua capacidade de resistência diante dos encantos de Norma. “Resolvi tirar todas aquelas lembranças da cabeça, fechei as cortinas, fingi que era noite, e dormi até bem mais tarde. Bem mais tarde do que eu pretendia, confesso. Insuportável, aliás, que a razão de ser da minha vida fosse outra pessoa. Norma estava morta. Meu olhar a tinha matado. Diante de tamanha riqueza de possibilidades de escolha, optei pela astronomia. O que eu sabia era muito pouco, para ser médico não deu. Pelo menos, as estrelas estava ali toda noite. A não ser que chovesse, é claro”.
Os livros de Leminski, entre eles, “Catatau” (1975), mostram a relação bem próxima que existe entre ele, e outro escritor marginal, revoltado e também alcoólatra, o mulato Lima Barreto (1881-1922), “que mesmo lutando contra as enfermidades, contra as desgraças familiares, o vício do alcoolismo, e a descriminação racial, nos deixou uma obra sem choramingas, escrita com muito humor, ao estilo da melhor picardia carioca, e, ao mesmo tempo, com denso e dramático questionamento quanto aos destinos do homem e os rumos da humanidade”. Barreto e Leminski foram homens que apostaram tudo em seu talento, seu sangue, sua juventude, e seu suor na carreira literária.
As obras de Paulo Leminski permanecem mais do que presentes na contemporaneidade. Sua linguagem pode tranquilamente se transportar ao nosso caos atual, que, infelizmente, não chegou a ser vivido por ele, mas que continua exatamente como os seus mais proféticos e etílicos pensamentos.
“Naquele ano, parecia que todo mundo tinha enlouquecido. Quem nunca rezou, estava fazendo novena. Materialistas apareciam usando contas de Oxalá. Quem nunca roubou um palito de fósforo, estava dando desfalque em banco. Os filhos estavam virando pais, aos milhares, e os pais e mães mijavam nas fraldas e pediam colo".