Capítulos XVII e XVIII - A esperteza comeu o dono e A investigação americana (romance "O ULTIMATO")

Capítulo 17 - A esperteza comeu o dono

O deputado Siqueirinha contratara um jardineiro, Francisco Lucena, para cuidar das plantas, banhar e passear com os cachorros para diminuir-lhes o estresse.

Lucena levava uma vida difícil.

Morava em barraco de madeira, coberto de zinco, assoalho de terra batida, visitado por ratos nas noites escuras e odorizado pelas fétidas águas do esgoto que serpenteava o pátio de sua casa.

E ainda pagava aluguel de cem reais por mês.

As dificuldades financeiras de Francisco melhoraram imediatamente à assinatura de sua carteira de trabalho. O deputado decidiu que o empregado ganharia quinhentos reais por mês, acrescidos do vale transporte e das refeições servidas nos dias úteis. Descontaria a contribuição para o INSS e não recolheria o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, um exagero concedido pelos parlamentares ao aprovarem projeto de certa senadora, beneficiando a categoria à qual pertencera.

Quando do ultimato dos Justiceiros Implacáveis, Siqueirinha, num gesto de esperteza, transferiu seu patrimônio para o jardineiro Francisco Lucena.

Acreditava que o empregado, por ser analfabeto e discreto, não lhe causaria problemas.

O jardineiro assinou procuração em cartório sem saber do que se tratava. O documento outorgava ao parlamentar fazer o uso que lhe conviesse dos bens em nome de Francisco.

A partir da transferência do patrimônio de Siqueirinha para Francisco, a vida do jardineiro mudou para melhor. O patrão concedeu-lhe algumas gratificações, reajustou-lhe o salário e facilitou-lhe o crédito como avalista.

Lucena mudou de endereço, deixou de utilizar os precários transportes coletivos urbanos, comprou um velho Del Rey em bom estado de conservação, e até passou a tomar uma cervejinha nos finais de tarde, acompanhado da namorada, uma morena nascida no Piauí.

Francisco construiu uma modesta casa de alvenaria, de três cômodos. Gastou na empreitada quase dez mil reais, aí incluído o preço do terreno, situado na periferia da cidade.

Todos os bens do jardineiro valiam cerca de quinze mil reais: a casa, dez mil; o Del Rey (depois da ótima reforma que fizera), três mil; o som, a geladeira, o fogão e o DVD, dois mil reais.

Uma pequena fortuna, para quem morava de aluguel em barraco apertado, localizado em região insalubre e violenta, e ainda por cima andava de ônibus, sem conforto e pontualidade.

Às vezes, Francisco se perguntava o que lhe fizera melhorar de vida? Continuava o jardineiro de sempre, analfabeto (mal assinava o nome)… “teria sido a sorte que o favorecera, com a ajuda do bondoso patrão".

“Que homem bom”!” – dizia para si.

Certo tempo depois, o jardineiro recebeu uma correspondência. Como não sabia ler, pediu que alguém o fizesse para ele. A carta intimava-o a comparecer à Delegacia da Receita Federal para prestar esclarecimentos. Mesmo sem entender o porquê da intimação, dirigiu-se àquele órgão onde lhe exigiram justificativa para a compra recente de diversos imóveis, segundo informações dos cartórios competentes.

Desde que obtivera o registro no Cadastro de Pessoas Físicas, Francisco apresentara declaração de isento do Imposto de Renda.

O acréscimo patrimonial apurado era exorbitante e injustificável.

A rede de informações dos Justiceiros Implacáveis havia funcionado mais uma vez.

Lucena nada explicou.

Nem poderia.

Os imóveis em seu nome foram leiloados pela Receita Federal. A entidade calculou o Imposto de Renda sonegado, aplicou-lhe severas multas, cujos valores ultrapassaram as importâncias obtidas com o leilão. E ainda o condenou a “penas alternativas” por sonegação fiscal.

A justiça aplicou a Francisco as penalidades que jamais aplica aos faltosos contribuintes de colarinho branco.

Com legislação tão generosa, beneficiam-se creches e asilos para idosos e crianças. Muito mais, ainda, corruptos dos altos escalões do governo.

O deputado Siqueirinha perdeu todos os bens que possuía. Esquecera de que, quando a esperteza é grande demais, engole o dono.

Foi o que lhe aconteceu.

Não acreditou, também, que os Justiceiros Implacáveis acompanhavam-lhe os passos minuto-a-minuto.

Por isso eram chamados de implacáveis.

A organização deu-se por satisfeita.

Os recursos voltaram à fonte, através do leilão promovido pela Receita Federal. Retornaram, assim, aos cofres públicos, de onde não deveriam ter saído para finalidades espúrias.

Manoel Siqueira foi poupado da execução sumária a que estava destinado. Não por clemência. Os Justiceiros Implacáveis jamais deixariam de castigar exemplarmente um corrupto. Siqueirinha livrou-se da pena fatal por ter recebido um bom castigo, decorrente das seguintes razões:

1. A Câmara dos Deputados apurou que os bens em nome de Francisco pertenciam a Siqueirinha, e que a procuração fora um artifício para reavê-los depois. O fato caracterizou quebra de decoro parlamentar e por isso ele teve o mandato cassado.

Um caso raro de punição.

2. O segundo motivo pelo qual não lhe foi aplicada a sentença capital, deveu-se à sua expulsão da Igreja do Culto à Guitarra, com expressa orientação dos líderes para jamais ser apoiado política, moral e financeiramente.

A igreja agiu radicalmente.

Era uma instituição séria.

3. Sem o mandato de deputado e apoio da Igreja do Culto à Guitarra, Manoel Siqueira tornou-se um homem pobre, sem esperanças futuras.

Um vencido.

Sofreria as agruras dos conterrâneos, com a segurança física ameaçada, a saúde desprotegida, os recursos financeiros minguados, as necessidades da família aumentadas.

Eis a sua “morte”, menos dolorosa, porém excessivamente lenta e sufocante.

Foi o fim de suas falcatruas.

A paga de seus males.

A vitória da justiça.

As iniciais JI foram, finalmente, estampadas no peito do ex-deputado em uma noite escura de inverno, quando ele saía de uma casa de jogo.

Siqueirinha investia os poucos reais no Bingo e no Jogo do Bicho, na tentativa de multiplicá-los. Bêbado e entorpecido pelo álcool, quase não sentiu as marcas grafadas a punhal.

A organização não podia deixar de imprimi-las.

***

Capítulo 18

A investigação americana

O avião da Varig aterrissou no aeroporto internacional de Brasília as dez horas. Transportava dois agentes do FBI, vindos de Washington, a pedido dos presidentes da Câmara e do Senado.

Suas excelências ficaram insatisfeitas por que os policiais americanos não viajaram no “aeroplano”, um avião novo e caro, pertencente à Presidência da República.

A aeronave não estava disponível para transportar os federais ianques; viajara a Suíça, transportando o presidente, a primeira dama, uma dúzia de parlamentares, além de três ministros de Estado. Faziam parte da comitiva netos e amigos dos filhos do presidente, que aproveitaram para curtir a estação de esqui nos Alpes Suíços.

Um privilégio de poucos.

De brasileiros, menos ainda.

Os “tiras” americanos iniciaram os trabalhos avidamente. Sentiram grande dificuldade em dialogar com as autoridades policiais brasileiras, que não falavam inglês e pouco entendiam das avançadas técnicas de investigação.

Com métodos modernos, equipamentos sofisticados, técnicas investigativas inteligentes, racionalizaram o tempo sem desperdiçar valiosas horas com assuntos supérfluos.

Não fizeram como os nossos policiais que costumam aguardar a chegada de alguém para socorrer o veículo que interrompera o percurso por falta de gasolina ou para trocar o pneu esvaziado durante uma perseguição.

Para eles, tudo estava disponível a tempo e a hora; até os projéteis de seus robustos revólveres eram abundantes. Se necessário, trocariam tiros pelo tempo suficiente ao cumprimento da tarefa, acertando o alvo com precisão, pois tiveram treinamento sem economia, ao contrário do que acontece aos nossos agentes.

Com todas essas facilidades, porém, os “meninos do FBI” (como eram tratados pelas autoridades brasileiras) não esclareceram de modo convincente o motivo e a causa das mortes de parlamentares e funcionários do governo.

Os agentes acharam… sim, acharam, não tiveram a certeza, de que os crimes foram planejados por uma organização justiceira, bem treinada e curtida em elevado sentimento de vingança. (Não imaginavam que superariam até mesmo a determinação de seu inspirador, o Capitão Virgulino, conhecido por Lampião, o Rei do Cangaço, que tanto trabalho deu aos “macacos” de sua época).

Os efebianos desconfiaram dos laudos periciais emitidos pela polícia técnica. “Talvez tenham sido forjados” – disseram em determinado relatório.

A revisão das autópsias, realizadas em corpos exumados, não revelou nada que contrariasse os atestados de óbitos expedidos à época dos acontecimentos.

Os exames revelaram-se inconsistentes.

O tempo decorrido entre a morte e a exumação impossibilitou o diagnóstico preciso da causa mortis.

“Se alguns corpos não tivessem sido cremados, talvez revelassem motivos contrários aos apresentados pelos legistas brasileiros” – dissera o chefe americano da investigação.

Quanto às marcas grafadas nos tóraces das vítimas, os ianques opinaram que os possíveis vingadores – se tais mortes foram motivadas por vingança –, deixaram o símbolo da organização impresso, pelas seguintes razões:

1 – Intimidação;

2 – satisfação de um desejo contido, realizado após anos de expectativa, de esperanças renovadas, sem resultados satisfatórios.

O presidente do Congresso ficou decepcionado com o resultado das investigações.

Em entrevista coletiva à impressa, disse:

– Devíamos ter solicitado a ajuda da Scotland Yard. Os ingleses são mais eficientes em suas investigações. Essa história de que o tempo modificou as evidências é balela. Eles demonstraram pouco interesse em elucidar os casos.

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Amanhã, leia o último capítulo.