Capítulos XI e XII - Reunião costumeira e A frustração continua (romance "O ULTIMATO")
Capítulo 11
Reunião costumeira
Os membros dos Justiceiros Implacáveis estavam reunidos naquela noite de sexta-feira, sob o calor de 31 graus Celsius.
O chefe mantinha ao seu lado o pit bull atento aos movimentos na sala. O cão acostumara-se a receber agrado do dono: uma orelha humana, pálida, com um dos lados vermelho do sangue escorrido quando fora separada do corpo a que pertencera.
Naquele dia, não foi servida a “iguaria” ao cachorro. O enorme animal babava ao lembrar as reuniões anteriores em que não lhe faltara uma porção cartilaginosa, pertencente a algum nobre parlamentar. Ou a um dos seus muitos assessores.
– Companheiros! – disse o chefe, após temperar a garganta, num esforço de livrá-la da aderência mucosa que o perturbava naquele momento.
O chefe tratava os colegas por “companheiros”, embora nenhum deles gostasse da expressão, por lhes lembrar certo partido político, nascido à esquerda dos movimentos sociais, mas que, depois de alcançar o poder, transformou-se, perdeu as raízes, bandeou-se rumo à direita ortodoxa, contrária às pregações do passado.
Uma metamorfose de grande alcance.
A transformação alcançou primeiro o líder maior do partido, cujo caráter mudara ao sabor das circunstâncias e conveniências políticas.
– Está bem – corrigiu o chefe – Colegas! Defensores intransigentes da justiça! Concordo que a expressão “companheiros” lembra “camaradas”, “minha gente”, “brasileiros e brasileiras”, tratamentos usados por comunistas e ex-presidentes de nosso país. Eles eram demagogos, traiçoeiros e incompetentes.
Algumas palmas perturbaram o silêncio reinante no ambiente. Risos afloraram aos lábios da maioria do auditório. Todos se olhavam mutuamente, com ligeiro aceno de cabeça. Concordavam com a observação do superior.
– Importa-nos, neste instante, a nossa causa, o desejo de justiça, realizado satisfatoriamente até agora, graças à obstinação dos com… desculpem, a força do hábito me impele. Pois bem…
- …
– Restam ao senador Eustáquio apenas dez dias de prazo. Ele não efetuou nenhum depósito bancário para atender às nossas exigências. Não seremos complacentes com ele ou outro qualquer. Designo os agentes 232 e 235 para a missão de executarem, depois de transcorrido o prazo concedido, o deputado “X”, aquele que apresentou projetos à SUDENE, à SUDAM, tomou dinheiro emprestado ao BNDES e ao Banco do Brasil, sem, contudo, honrar seus compromissos…
O orador fez ligeira pausa; procurava as palavras fugidas de seu vasto vocabulário, em virtude da emoção da revolta, sentida ao falar do assunto.
… – Desviou as verbas, embolsou os recursos, enganou a Nação…
Mais uma vez, parou de falar por alguns segundos, bateu as pálpebras, sentindo ardência nos olhos. A voz quase embargara, motivada pelo sentimento de raiva, ao lembrar a roubalheira dos políticos, insensíveis à miséria do povo.
… – Mas não nos enganará – continuou o chefe. – Será castigado implacavelmente, para mostrarmos que cumprimos a palavra no prazo estabelecido, por mais longo que pareça.
- …
– Estaremos reunidos na próxima sexta-feira, no mesmo horário. Boa noite, companheiros!
Os participantes da reunião ainda mantinham o sorriso nos lábios quando o chefe, virando-se, corrigiu o tratamento dispensado aos colegas:
– Intransigentes defensores da justiça! – concluiu.
Ao sair, o chefe acenou para o auditório com a mão direita. Despediu-se para não mais retornar até a próxima reunião.
– Paladinos da justiça! – disseram os presentes, com os punhos erguidos para o alto.
Saíram todos satisfeitos.
***
Capítulo 12
A frustração continua
O delegado Bat Masterson andava desconfiado. A polícia Federal, chamada para auxiliar nas investigações, tinha sido de pouca valia. Nada esclarecera sobre as mortes das autoridades públicas, acontecidas até então.
Isso o irritava.
A eficiência dos Federais estava desacreditada.
O último parlamentar encontrado morto apresentava sinais de ter sido picado por uma cobra. A evidência teria sido revelada depois de minucioso exame do corpo, feito pelos policiais da equipe.
Dois pequenos orifícios mostravam-se claros na perna esquerda, abaixo do joelho da vítima, encontrada à sombra de uma árvore, em sua fazenda no interior de Goiás.
– Fotografe a perna esquerda. Aplique um close para ressaltar a marca – ordenou, aos gritos, o chefe da investigação.
O profissional da fotografia disparou a Polaroid por algumas vezes.
Em nenhuma oportunidade conseguiu nada.
A máquina estava defeituosa.
– Porcaria! – retrucou o delegado, decepcionado. Raivoso, arrebatou o equipamento do subordinado e atirou-o contra uma pedra; a máquina espatifou-se no resistente granito.
– Mas, delegado, tudo indica que o homem morreu picado por uma cobra. Segundo seus empregados, ele teria saído para vistoriar uns pastos. Cansado, deitou-se à sombra do arvoredo, depois de descalçar as botas dos pés. Veio a cobra e… “tisc”, mordeu-o na perna. Está tudo muito claro!
– Por que a zanga? – perguntou outro agente, depois de esvaziar a lata de Coca-Cola e atirar o vasilhame de encontro ao chão de terra vermelha.
– Levem o cadáver para o “Rabecão”. Veremos isso no necrotério.
Transportavam o corpo do deputado envolto em um saco plástico preto, quando um dos policiais gritou:
– Esqueceram de levar a orelha. Alguém a cortou, deixando-a junto ao corpo – disse um jovem policial, que a repassou ao chefe da equipe, para exame posterior.
No IML, a autópsia foi prejudicada em virtude de a família do morto não ter permitido que o corpo fosse aberto, por questões religiosas.
A esposa do "de cujus" não gostaria de ver ou saber ter sido o marido aberto como um frango e posteriormente costurado como uma bolsa de couro velha e defeituosa.
O fator mais impeditivo, porém, foi o aspecto religioso. A família do falecido deputado pertencia a uma religião que acreditava na ressurreição dos mortos, mas não a entendia conforme tratada na Bíblia.
A viúva, ao imaginar-se deitada, com a cabeça encostada ao peito do ressuscitado marido, quando isso acontecesse, não se sentiria bem com os fios da costura, possivelmente mal feita, fazendo-lhe cócegas no nariz.
Houve negativa de Parecer do médico-legista.
O laudo cadavérico só poderia ser fornecido com detalhes se ele abrisse o defunto para examinar-lhe as entranhas.
O documento informava o seguinte:
“Causa mortis desconhecida. Talvez provocada por picada de animal peçonhento. Existem pequenos orifícios na perna esquerda, abaixo do joelho. O tórax está marcado com as letras JI apostas indelevelmente. A orelha decepada foi removida poucos minutos após a morte. Os ferimentos não influíram na causa do óbito”.
Bat Masterson ficou frustrado mais uma vez.
A polícia federal não se pronunciou.
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Amanhã, novo episódio.