Capítulo I - O corpo marcado (romance "O ULTIMATO")

Caro leitor,

Desejo a todos um 2010 próspero e de muita saúde!

A partir de hoje, publicarei, diariamente, capítulos de um outro romance de minha autoria, intitulado O ULTIMATO.

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Apresentação

O Ultimato é uma pequena estória de ficção. Foi escrita sem o propósito de incitar a violência, debochar de autoridades ou macular a dignidade de pesoas honradas.

A inspiração para escrevê-la veio de fatos amplamente noticiados pela imprensa durante anos, tendo a corrupção no Brasil como assunto dominante.

Garanto ao leitor que não será mera repetição do que já foi escrito, até por mim mesmo. Trata-se de uma estória envolvente, com momentos de humor descontraído.

Como cidadão, acredito na Justiça, única instituição autorizada a aplicar penalidades ao infrator da lei, da moral e dos bons costumes.

Como cirstão, sou contrário a qualquer tipo de violência, a despeito de tê-la utilizado como tema ao escrever esta estória.

Não defendo o que escrevi.

Desejo, aqui, dissociar as ideias do escritor e do cidadão. O escritor aproveitou-se de fatos recorrentes para montar a estória, sem, contudo, desejar vê-la cumprida sob qualquer pretexto; o cidadão almeja a paz e a moralidade do homem público em suas relações com o Estado.

Este pequeno romance é uma ficação. Quaisquer referências a acontecimentos e lugares tiveram o objetivo de dar à ficção um sentido de realidade. Toda semelhança, pois, com instituições ou pessoas reais, vivas ou mortas, será mera coincidência.

Lamércio Maciel Braga

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Capítulo 1

O corpo marcado

No início do expediente, a secretária entrou na sala do espaçoso escritório e encontrou o patrão deitado no assoalho.

Estava morto.

O cadáver foi localizado de barriga para cima, as pernas estiradas e os braços estendidos ao longo do corpo. Os olhos sem vida pareciam ter visto algo assustador. A boca aberta forçava o queixo para baixo. O aspecto macabro da vítima confirmava o horror do último instante vivido na noite anterior.

O escritório onde se deu o óbito ficava no décimo andar de belo edifício recém-construído, uma edificação luxuosamente erguida para sediar a administração de grandes corporações nacionais e estrangeiras.

Renomados advogados, médicos de elevado conceito e arquitetos famosos disputavam o privilégio de ali se estabelecerem.

O sofisticado endereço era uma referência para profissionais das mais importantes atividades empresariais. Uma espécie de Meca de destacados empreendimentos.

Dona Marly, a secretária, mal cruzara a porta do elegante gabinete, quando se deparou com a lúgubre cena. O impacto a deixou em estado de choque.

O local parecia sinistro.

Antes do ocorrido, estava bem decorado e elegantemente mobiliado; naquele instante, porém, inspirava medo. A morte chegara com toda frieza. Transformara o ambiente alegre em recinto triste e pavoroso.

Refeita do susto do primeiro momento, a secretária deixou a sala às pressas. Apavorada, gritava desesperadamente por socorro. O pânico a impediu de notar a falta da orelha direita do cadáver, de onde o sangue escorrera para acumular-se junto ao pescoço.

O medo também evitou que dona Marly visse a horripilante marca estampada no peito do morto, produzida por um objeto cortante e afiado.

Na figura impressa no tórax liam-se as letras “j” e “i” grafadas em maiúsculas e emolduradas por um quadrilátero de proporções maiores. Todo o desenho media cerca de doze centímetros quadrados.

A letra jota foi elaborada unindo-se a linha vertical à horizontal, traçada da direita para a esquerda, prolongada verticalmente por uns dois centímetros. Parecia um “L” em sentido contrário, com um pequeno seguimento para cima.

Assim: “J”.

A letra “I” foi mais fácil de fazer: um único corte desferido em linha reta de cima para baixo.

Desse modo: “I”.

A estampa sinistra tinha o seguinte formato:

JI

Antunes, o morto, era advogado. Um cinquentão alto, forte, bem apessoado, com alguns fios de cabelos brancos a ornar-lhe o rosto redondo. A face um pouco enrugada aparentava sinais da velhice que se aproximava lenta e continuadamente.

Era chamado de doutor Antunes. A esposa, dona Mercedes, jovem senhora recém saída dos quarenta anos, ainda exibia traços de beleza na juventude. Nascera de família pobre; estudara pouco; sequer concluiu o segundo grau. Quando solteira, trabalhou como camareira de um hotel na capital do estado. Ali, conhecera o doutor Antunes, por ocasião das viagens que fazia com interesse político.

Casaram-se dez meses depois, para afastar o falatório das pessoas. A futura sogra do doutor Antunes irritava-se com os comentários de que a filha era amante do advogado. As fofocas aceleraram o casório, realizado na presença de autoridades civis e políticas.

Dona Mercedes preferia chamar o marido pelo apelido de “Anta”. Não desejava, dessa forma, depreciá-lo; tratava-o assim por sentir nele a firmeza consubstanciada no significado de outro sinônimo da expressão, ou seja, a pilastra angular de um edifício. Para ela, o Anta foi o arrimo que jamais faltou. Seu amor maior? Não sabia responder. Sua grande paixão fora um antigo namorado, com quem vez ou outra traia o marido.

O apetite sexual de Dona Mercedes ofuscou-lhe a razão. Por que magoara o esposo? Se ele não a satisfizera plenamente, apagando o fogo de seu corpo esbelto e voluptuoso, pelo menos tentara.

E como tentara!

– Aquela infeliz disfunção! – irritava-se, ao lembrar frustradas noites de amor com o falecido marido.

O apelido do doutor Antunes resultou incorporado ao nome.

Judicialmente, solicitou a alteração do registro civil e a pequena palavra deixou de ser uma alcunha. O epônimo juntou-se às demais denominações e ele passou a assinar-se Antunes Anta da Silva.

Para dona Mercedes, a mudança fez pouca diferença. Sempre considerou o antigo epíteto de bom significado: a pedra angular, de esquina. A personalidade do marido era firme como uma rocha.

Assim ela o tivera em conta.

Todavia, para os estranhos, principalmente inimigos políticos, o acréscimo ao nome caíra-lhe como uma luva. Refletia o indivíduo de inteligência limitada, burro, tolo, disparatado.

Os familiares lamentaram o passamento do ente querido. Os amigos lastimaram a morte prematura do doutor Antunes, aos cinquenta e três anos de idade. Os desafetos falavam do assunto com um leve sorriso nos lábios.

Os adversários políticos? Como se sentiram aliviados! Estavam livres da concorrência; o falecido tinha sido um candidato de peso à sucessão municipal. A força da máquina administrativa atual já se manifestava solidária à próxima campanha.

Os recursos financeiros do partido, provenientes de grandes contribuições de empresas privadas e do recolhimento obrigatório dos filiados, tornavam o candidato imbatível.

As empreiteiras contribuíam generosamente para o fundo partidário, “sem segundas intenções”, orgulhosas de fazer parte do processo democrático. Uma iniciativa que mais tarde revelou-se indecente, alargando os caminhos da corrupção.

Como tesoureiro da agremiação partidária, doutor Antunes usou o poder do dinheiro para eleger vereadores e deputados. Os correligionários jamais lhe teriam negado apoio político.

E quantos empregos públicos não conseguira, interferindo nos altos escalões do governo? Cargos e funções concedidos em período eleitoral geram grandes dividendos políticos – o voto, arma por ele usada com habilidade.

– O homem era forte demais! Ainda bem que morreu – confidenciou certo deputado a um dos seus pares, ao ouvir de correligionários do extinto citações sobre sua influência política.