Capítulos 14 e 15 (extraídos do romance "O Único" - FINAL)
Capítulo 14
O deputado Manuelino Damasceno voltara do recesso parlamentar. Brevemente, iria à tribuna da Câmara para continuar sua luta pela moralidade administrada da Casa.
Ele temia por sua vida. Era um homem obstinado pela verdade. A firme disposição de denunciar colegas de parlamento ajudava-o a enfrentar o perigo.
Recentemente, recebera diversas ligações telefônicas anônimas; do outro lado da linha o intimidavam, exigindo que parasse com suas denúncias.
Manuelino não abria mão de seus princípios. “No dia em que deixar de denunciar casos de corrupção cometidos neste país, o homem público terá se regenerado, passado a agir honestamente ou estarei morto” – dizia aos jornalistas que o assediavam por informações.
– Deputado, o que diz o senhor sobre a “quebra” da COME, a cooperativa dos metalúrgicos? Dizem que deixou uma dívida fabulosa; qual a sua opinião? – perguntou um jovem repórter.
– A COME “quebrou” por ineficiência e desmando de seus dirigentes, pessoas preguiçosas, perdulárias e incompetentes. Não souberam administrar a entidade.
– O senhor acredita em desvio de dinheiro?
– Muito. Roubaram desavergonhadamente. A nova diretoria estava com sede demais e foi à fonte, julgando-a inesgotável. Nada resiste a ação perdulária e desonesta. Estavam famintos. Quem está com fome, “come”, não é verdade? – disse, rindo da comparação que fizera.
– Deputado, a COME era dirigida por integrantes da CUTAM ou por pessoas indicadas por ela. Os administradores de reconhecida competência, existentes na gestão anterior, foram substituídos pelos atuais. O que o senhor diz de “tudo isso que está aí”?
– Você é muito esperto, meu jovem repórter. A expressão que usou – “tudo isso que está aí” – lembra a todos nós o chavão dito no passado. Uma história alterada pela mudança de mentalidade. A nova ordem não nos permite ser irresponsáveis como antigamente. Até eu a usei, embora o fizesse mais para parecer igual aos companheiros com quem convivia. Hoje, repudio o chavão, reprimo a irresponsabilidade política, expilo, como disse um ex-deputado, a arrogância que nos acometia e convoco o povo a uma tomada de decisão séria, para que possamos mudar este país.
– Ih! Olha aí outro clichê daquela época! – disse o repórter sem conter o riso, referindo-se à frase “este país”.
– Aos poucos todos mudarão. Esses ditos remontam ao tempo da militância de esquerda. Os vermelhos, hoje, não sabem o que realmente são; ora se dizem de esquerda ora se unem à direita ortodoxa, filiam-se ao centro corporativo, nepotista, interesseiro e, às vezes, desonesto, como, aliás, o é boa parte dos homens públicos. Mas, isso vai mudar, tenho certeza.
– O Banco Oficial S/A teve um prejuízo de seis milhões de genuínos com a COME. Esse dinheiro será recuperado? De que forma?
– Não haverá recuperação. O banco até já o contabilizou como “Créditos em Liquidação”, a ser compensado como prejuízo. Fez igualmente aos empréstimos concedidos a deputados, senadores e a seus apadrinhados. Poucos políticos pagam o que tomam emprestado a bancos oficiais. O mal desses estabelecimentos é emprestar dinheiro a essa gente, com elevado limite de crédito e escassa ou nenhuma garantia. E de pouca honestidade, também. Alguns oferecem bens fantasmas ou supervalorizados. Uma vergonha!
– Aqueles órgãos criados sob pretexto de desenvolver as economias de certas regiões do país agem do mesmo jeito?
– Exato. As “SS”, como são chamados, em virtude de suas siglas, não passam de escoadouros de dinheiro público. Já foram extintos certa vez, mas os vivaldinos conseguiram ressuscitá-los. Emprestar seis milhões para criar pequenos animais (asquerosos, por sinal), tão comuns e abundantes nas margens de rios e lagoas, é um absurdo. Eu diria, uma maneira desonesta de enriquecer pessoas próximas ao Poder.
– É isso aí, deputado. Gostaria, como cidadão, de ser otimista como o senhor, ao dizer nesta entrevista que as coisas irão mudar – finalizou o experiente repórter.
***
Capítulo 15
Os deputados estavam umas araras com Manuelino. Nos bastidores da Câmara era ameaçado de morte. As contundentes provas apresentadas juntaram-se aos testemunhos de pessoas e autoridades que afirmaram a existência de desvio de dinheiro público.
Os agentes infiltrados, principalmente nas grandes empresas do governo, fizeram “a festa”. Farta documentação instruiu os processos de cassação de mais de trinta parlamentares. Outros estavam por um fio. Manuelino prometera, na última reunião, apresentar provas contra eles.
No dia aprazado, a imprensa inteira cobriu o acontecimento. Mais uma “bomba”, um novo susto para quem aguardava ouvir o nome pronunciado pelo humilde deputado Manuelino Damasceno – “O único”.
Os jornalistas passaram a chamá-lo de “O único”, desde o início de sua trincheira de luta pela limpeza moral no Poder Legislativo. Por que o “O único”? Porque, em toda a história do legislativo federal de Bostanópolis, ninguém ousara fazer o que fizera Manuelino.
Uma exceção.
Uma raridade.
Um exemplo a ser seguido.
***
A imprensa aguardava, o povo esperava, e Manuelino diria, naquela tarde, o que o cidadão honesto desejava ouvir: a revelação de novos acusados.
O silêncio no plenário da Câmara era absoluto. Mesmo amedrontados, os deputados queriam ouvir as denúncias de “O único”.
– Senhor presidente, senhoras deputadas, senhores deputados! Mais uma vez a moralidade pública e o interesse nacional exigem de mim, como representante do cidadão de boa índole, vir a esta tribuna com provas incontestáveis do comportamento faltoso de membros desta Casa. Eis, Excelências, as provas a que me refiro:
Manuelino começou a folhear papéis em uma grande pasta de arquivo. Documentos originais, cópias autenticadas, convincentes provas das falcatruas cometidas, permitidas ou facilitadas por alguns deputados.
Com dificuldade para passar cada folha de papel, molhava o dedo indicador da mão direita na língua áspera, repetidas vezes. Em cada folha detinha-se para ler o seu conteúdo.
Quatro deputados riam ao fundo da sala, enquanto Manuelino passava as folhas do dossiê, com o dedo molhado na própria saliva.
A partir de certo momento, o denunciante começou a passar mal: a voz tornara-se rouca, os olhos vidrados, as mãos trêmulas, e uma secreção esverdeada escoria pelo canto da boca.
Tudo indicava algo errado.
De repente, o nobre deputado – este sim, um NOBRE parlamentar – caiu, arrastando consigo a pasta comprometedora.
O serviço médico da Câmara imediatamente o socorreu, na tentativa de salvar-lhe a vida.
Será que queriam mesmo impedir a sua morte prematura, salvar-lhe a existência honesta e responsável? Ou tudo não passava de vergonhosa encenação?
***
Morreu Manuelino.
Vítima da sua honestidade.
Os papéis comprometedores, acusando parlamentares e pessoas do governo, desapareceram misteriosamente do local.
Ninguém sabia aonde foram parar.
Jamais foram encontrados.
Manuelino Damasceno, O único, foi vitimado por arsênico, engenhosamente aspergido às folhas dos papéis que manuseava.
A cada página virada, contaminava-se pelo veneno letal.
Os ladrões do Erário continuam livres, leves e soltos.
Num ambiente em que já se disse existirem trezentos “picaretas”, será difícil identificar outro Manuelino, com a mesma vontade e o mesmo entusiasmo para combater a corrupção.
Pobre Bostanópolis!
FIM