Capítulos 10 e 11 (extraídos do romance "O Único")

Capítulo 10

O SITREM defendeu-se de uma ação movida pelo Banco Oficial S/A. O estabelecimento exigira a devolução de duzentos mil genuínos, creditados indevidamente na conta da instituição.

O crédito acontecera por descuido do funcionário que digitara o número da conta errada. O diretor financeiro do sindicato sacou o dinheiro disponível, sem qualquer constrangimento. Alegou que, se estava na conta da entidade, poderia utilizá-lo como lhe conviesse. Sem pensar duas vezes, transferiu a importância para sua conta particular.

Afinal, o dinheiro também não era do sindicato.

Doutor Pessoa Júnior defendeu o SITREM nessa ação sem qualquer fundamento jurídico. Apostou no escuro. O “escuro” em que apostara, todavia, não era assim… tão escuro. Era quase uma premonição.

O escritório de Juninho ficara famoso por ganhar ações impossíveis. Uma das formas utilizadas consistia em negociar com o advogado adversário a perda dos prazos regulamentares para defesa. Isso acontecia muito em causas patrocinadas ou defendidas por agentes do governo.

A correspondência do Judiciário, recebida naquele dia, informava que o advogado do Banco Oficial S/A perdera o prazo para contestação.

O SITREM nada teria a devolver.

Ganhara a questão.

De graça veio, de graça ficou, deduzidos os genuínos partilhados com os advogados protagonistas.

Esse doutor Francisco Pessoa! – foi a voz introspectiva do sindicalista, inspirando-se no que dissera, para si, o ilustre advogado.

No dia seguinte, o advogado recebeu a visita do sindicalista.

– Doutor, aí estão dois cheques: quarenta mil genuínos para o senhor e quarenta mil para o advogado do banco, que se fez de esquecido e perdeu o prazo processual. Foi fácil, como o senhor previu.

Soube-se, depois, que o funcionário do banco, responsável pelo crédito indevido na conta do SITREM, fora despedido. Os direitos pecuniários da rescisão trabalhista serviram para amortizar o empréstimo concedido para saldar a dívida. Ele deveria pagar o restante em prestações mensais, avalizadas pelo pai, modesto servidor público.

***

No escritório do doutor Francisco Pessoa trabalhavam três advogados, rapazes jovens, recém saídos da faculdade, de pouca ou nenhuma experiência jurídica. Eram tratados com muita consideração por serem filhos de juízes da alta Corte de Justiça.

O pai de um deles era desembargador.

Dos outros dois, juízes de instância superior.

Processos judiciais de alto valor eram distribuídos de forma tal que caíssem nas mãos desses juízes. Para conseguir que os autos fossem submetidos à análise e julgamento daqueles magistrados, doutor Pessoa Júnior remunerava funcionários da Justiça, encarregados da distribuição dos processos.

Aos três advogados filhos dos árbitros cooptados cabiam a “defesa” de causas de grande valor pecuniário. Os jovens defensores não precisavam possuir notório saber jurídico.

Bastariam suas assinaturas nas petições.

O escritório de Juninho era tido como o mais eficiente da cidade. Um vitorioso de causas impossíveis. O nome da empresa firmava-se na praça dia a dia, graças a reconhecida “competência” de seus jurisconsultos.

Capítulo 11

O Sindicato dos Catadores Autônomos de Resíduos Plásticos – SINCARP entrara na Justiça tentando uma indenização individual do Estado para os associados.

Um número excessivo de seus associados fora acometido de doença alérgica e infecciosa, ocasionada pela sujeira das garrafas plásticas vazias.

Os recicladores procediam à seleção dos vasilhames nas cooperativas; através desse procedimento, teriam sido contaminados por restos de substâncias químicas, urina de ratos e de humanos.

Para satisfazerem a curiosidade, espiavam pelos gargalos e, involuntariamente, inalavam o conteúdo nocivo das garrafas manipuladas, sendo contagiados por vírus, germes e bactérias dos mais variados tipos.

O SINCARP alegou que o governo era responsável por essa questão de saúde pública, pois não normatizava procedimentos adequados de recolhimento desses materiais. Para eles, os recipientes vazios somente deveriam ser recolhidos depois de lavados e desinfetados convenientemente.

A classe consumidora dos produtos acondicionados em tais embalagens deveria arcar com mais um custo: higienizar os vasilhames antes de descartá-los.

Os freqüentadores de botequins, do sexo masculino, obviamente, nem sempre dispunham de mictórios para satisfazerem suas necessidades fisiológicas e, por isso, mijavam nas garrafas vazias.

Os recicladores foram contaminados irremediavelmente.

Depois de alguns anos de espera pelo deferimento do pleito, patrocinado pelo escritório do doutor Pessoa Júnior, o SINCARP recebeu da Justiça uma notícia desagradável: os juízes não concordaram com os argumentos da defesa e aconselharam aos recicladores reduzirem o nível de curiosidade.

Uma rara derrota foi imposta ao famoso escritório de advocacia.

Uma, depois de tantas vitórias.

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Leia, amanhã, novo capítulo!