Capítulo 4 – Surge o defensor da moralidade pública (extraído do romance "O Único")

A Central Única dos Trabalhadores Autônomos e Avulsos, a poderosa CUTA, elegeu, no último pleito, cinqüenta deputados federais, oito senadores, doze mil e quinhentos vereadores e diversos governadores e prefeitos.

A força da instituição firmava-se em dois patamares: o político e o econômico.

A atividade parlamentar constituía seu patrimônio maior.

O dinheiro era uma arma poderosa.

Os altos valores repassados pelo governo federal, anualmente, aumentava-lhe a energia vital, reafirmando sua participação no meio político com contribuições financeiras para eleger deputados, senadores, prefeitos e vereadores. Às vezes, governadores. Alguns, de estados economicamente significativos.

A CUTA tinha grande influência no governo. Conseguira empregar mais de vinte mil militantes, com salários dignos de bons profissionais, portadores de títulos acadêmicos. Muitos de seus apadrinhados eram quase analfabetos.

A pouca escolaridade não servia de impedimento para que associados da instituição galgassem cargos nos mais altos escalões do governo.

Um prêmio imerecido.

Uma irresponsabilidade condenável.

Um gesto autoritário.

Um desprezo pela coisa pública.

Enfermeiros administravam grandes instituições financeiras; metalúrgicos de poucas letras ocupavam posições em ministérios importantes, alguns ligados às áreas de saúde e social.

O exemplo vinha de cima.

***

Manuelino Damasceno foi um jovem ativo e empolgado. Alfabetizou-se aos dezesseis anos, após freqüentar um curso noturno patrocinado pelo Ministério da Educação.

As aulas duravam sessenta dias. Terminado o curso, os alunos desenhavam os nomes e liam sílabas de palavras como bola, casa, ou boneca. Soletravam com extrema dificuldade e escreviam de forma que ninguém entendia.

A educação formal de Manuelino não passara daí. Nas estatísticas do governo, porém, estava alfabetizado. Segundo as autoridades da área, os alunos dessa forma de aprendizagem sabiam ler e escrever.

– Agora, todos estão prontos para vida. Poderão, inclusive, votar conscientemente – dissera o Ministro da Educação, ao entregar aos alunos o Certificado de Alfabetização a que fizeram jus.

Manuelino, embora semi-analfabeto, dominava a palavra oral com desenvoltura, apesar dos erros gramaticais evidenciados ao se expressar em nome dos companheiros na luta por melhores condições de trabalho.

E de vida.

Ele combatera o modelo político e econômico do governo anterior. “Sou contrário a tudo isso que está aí”, dizia, com a autoridade de seus poucos meses de estudo.

Expressão como aquela era a marca do Partido do Homem Honesto, o PH2, e ele não se cansava de repeti-la enfaticamente.

Por ironia, o governo apoiado por Manuelino insistia em aplicar as mesmas regras aconselhadas por economistas neoliberais e pelo FMI, órgão obstinado em receitar ao país um remédio amargo e doloroso.

Difícil de ser administrado.

Custoso de ser aceito pela população miserável.

A nova administração adotou a “mezinha ortodoxa” como regra de conduta e prática. O atual governo, que tanto rejeitara o modelo econômico anterior, agora o defendia e apregoava suas vantagens e resultados, como produtos de sua lavra.

Copiaram a política econômica anterior.

Aproveitaram os programas sociais de então.

E ainda se diziam os “pais da criança”.

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Como presidente do SINTRAV, Manuelino organizara os catadores de resíduos plásticos em cooperativa. Em duas gestões, batalhou arduamente pelos companheiros. Obteve financiamento junto a um banco oficial para construir um galpão e uma prensa destinados à armazenagem e à compactação dos fardos a serem remetidos às indústrias de reciclagem.

Cada entidade tinha sua cooperativa com equipamentos montados de acordo com a finalidade de cada uma. Os financiamentos oficiais, subsidiados, se não abundantes, não lhes faltavam a ponto de prejudicá-los.

A sociedade civil apoiava o cooperativismo, preocupada com a gestão dos recursos financeiros passíveis de desvios. A malversação de fundos é muito comum nesse tipo de organização, em que o capital é dividido em cotas, individualmente de pouca significação econômica.

Instituições integradas por pessoas analfabetas são mais vulneráveis à roubalheira. A maioria dos associados não sabe analisar relatórios, planilhas, registros contábeis ou aplicações financeiras, atribuições a cargo dos mais escolarizados, nem sempre honestos.

A ingerência política nessas entidades também causava preocupação e descrédito. Todos temiam os políticos, mesmo os honestos, em número bastante reduzido.

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Alguns parlamentares e todas as pessoas de bom senso, entre elas um ou outro sindicalista, começavam a sentir certo fedor de podre no novo governo, depois de quase três anos de gestão.

Sabiam de contratações sem concurso público, um número gigantesco, totalizando quase vinte e cinco mil cargos. Esses servidores foram indicados para postos chaves em substituição a técnicos de renomados conhecimentos.

Empresas, fundações, institutos, bancos, e todas as demais entidades públicas passaram a ter nova administração. Administradas por gente incompetente, despreparada para funções técnicas e, em alguns casos, desonesta, degringolaram.

Muitas foram dilapidadas.

Espoliadas.

Os recursos financeiros desviados, astronômica soma, irrigaram os bolsos ávidos e outrora raquíticos dos novos dirigentes e de muitos políticos.

Comissões Parlamentares de Inquéritos, organizações judiciárias e policiais especializados saíram em busca dos malfeitores que sempre negavam suas ações criminosas. Outros, do topo da hierarquia fraudulenta, diziam desconhecer o sistema corrupto; alegavam não ter o mínimo conhecimento de tais ocorrências.

Sequer ouviram falar.

Eram inocentes.

E honestos.

As acusações, segundo eles, falsas e politicamente organizadas, serviam para denegrir a imagem do PH2 e do governo que a oposição ansiava por defenestrar do poder.

Existia “algo de podre no reino…”

Todos sabiam disso.

Ou pelo menos desconfiavam.

A maioria das denúncias estava consubstanciada em provas materiais ou em evidências lógicas e irrefutáveis.

Algumas CPIS foram encerradas sem nada apurar. Umas denunciaram grande número de delinquentes, outras não apuraram coisa alguma.

Enfim, salvaram-se todos.

Ou quase todos.

Três ou quatro deputados foram cassados, para dar satisfação à sociedade que reclamava da impunidade. Uma injustiça crônica e desprezível.

Os poucos políticos que empunharam a bandeira da honestidade, da moral e da ética na política, receberam dos cidadãos honestos elogiosos comentários.

Os demais foram agraciados com votos da outra parte da população despolitizada, analfabeta ou indiferente à moralidade nacional.

Os políticos corruptos voltarão.

E continuarão a roubar.

A não ser que surja, na política, um paladino em defesa da vergonha que vem sendo deixada de lado na pobre Bostanópolis.