Capítulo 3 – A vitória sindicalista (extraído do romance "O Único")

A grande concentração pública comemorativa aos dez anos de fundação do SINTRAV realizou-se no final da primavera em Bostanópolis, cidade cosmopolita de certa nação continental, situada abaixo da linha do Equador.

O país possui imensas riquezas naturais e uma população, na sua maioria, de pobres e miseráveis. Muitos vivem em absoluta privação de suas necessidades básicas, desasistidos pelo poder público.

As maiores carências da população localizam-se nas áreas da saúde, habitação e segurança. Apenas três por cento de seus habitantes são ricos.

Muito ricos.

Os programas sociais do governo, o “Fome Nenhuma”, por exemplo, não conseguiam amenizar a situação. O sucesso das campanhas via-se apenas nos discursos populistas e eleitoreiros do governo e na retórica dos políticos de sua base de apoio, responsáveis por “tudo isso que está ai”.

A expressão nunca foi tão verdadeira e atual.

No cotidiano do governo, desviavam-se recursos financeiros e gêneros alimentícios assustadoramente. Grande parte dos cartões de cadastramento do programa Fome Nenhuma estava nas mãos de funcionários municipais, de comerciantes desonestos e de secretários das prefeituras.

As doações financeiras feitas pela população solidária nem sempre chegavam ao destino, desviadas para fins eleitoreiros.

Enquanto os pratos dos pobres continuavam vazios, os políticos e seus apaniguados fartavam-se em suas mesas repletas de alimentos.

Comida destinada aos verdadeiros necessitados.

“Só me sentirei feliz, quando cada cidadão deste país fizer três refeições por dia” – dissera, em sua retórica populista, um dos mais importantes políticos de Bostanópolis.

O pobre ainda aguarda pelo menos um prato de comida diário para postergar o fim de seus dias, motivado pela fome e a desnutrição, agravado pela insegurança. “Melhor seria oferecer trabalho para o cidadão prover o próprio sustento; assim, a população manteria a dignidade e não serviria de massa de manobra aos políticos que se dizem pais do povo, mas não passam de padrastos irresponsáveis e cruéis” – dizia o pobre cidadão em sua desventura.

Os discursos terminaram.

O comício foi encerrado.

O povo, cansado das muitas horas de concentração, voltou para casa.

Trazia consigo a esperança incerta.

Nesta hora, ouvia outra voz: a do estômago vazio.

***

Tês milhões de associados. Esse número, bastante significativo, dava ao SINTRAV grande força política e financeira.

O sindicato era filiado à CUTA – Central Única dos Trabalhadores Autônomos e Avulsos, cujos dirigentes comemoravam novas filiações para os próximos meses.

Dessa vez, seriam agregados o Sindicato dos Catadores de Vidros, o SINCAVI, e o Sindicato dos Flanelinhas Autênticos, o SIMFLA, o mais simpático aos olhos dos companheiros.

A terminação gráfica, “FLA”, dava a impressão de ser vinculada a certo time de futebol ou à sua torcida organizada.

A bandeira do SINFLA estampava as cores vermelha e preta (um horror), com uma estrela bordada no lado superior direito.

A intenção dos idealizadores fora anunciar o nascimento de algo grandioso e organizado.

A estrela influenciaria positivamente – pensaram seus fundadores.

O tempo diria o futuro caminho da agremiação.

Cada associado dos diversos sindicatos filiados à CUTA contribuía com vinte “genuínos” por mês, num total de sessenta milhões de genuínos por ano.

A arrecadação mensal cobria gastos administrativos, aí incluídos honorários dos diretores. Seis dirigentes consumiam boa parte dos recursos financeiros recolhidos dos associados.

Gastavam o restante em viagens à capital federal e com carros-de-som contratados para animar manifestações públicas, realizadas com razoável freqüência, sempre condenando a política econômica e social do governo anterior, para eles o pior da história republicana.

“Genuíno” era o nome da nova moeda, assim denominada a partir da posse do atual governo. Substituíram a designação anterior para que a atual expressão monetária refletisse as mudanças ocorridas na economia do país.

“A nova divisa agora é real”, diziam os governistas, satisfeitos com a valorização do genuíno frente à suas congêneres estrangeiras.

A valorização do genuíno desagradava aos exportadores por reduzir os lucros de suas transações, mas servira de bandeira ao governo ao vir a público apregoar o êxito de suas realizações, uma delas a baixa cotação do dólar.

A política do Banco Central, por outro lado, passou, depois, a valorizar o dólar mediante repetidos leilões para compra da moeda americana.

Incoerência ou irresponsabilidade política? – perguntavam membros da oposição.

Ambas, respondia o povo descontente.

Conforme acontecera à moeda, a mudança de denominação também alcançou outras expressões utilizadas no governo anterior.

Todos os programas da gestão precedente, principalmente os sociais, tiveram seus nomes alterados.

Os atuais projetos seriam mais autênticos, expressariam as transformações ocorridas a partir da alternância do poder, afirmavam membros da equipe governamental, como se uma simples maquiagem alterasse a substância.

O novo governo dizia-se genuíno.

Legítimo.

Verdadeiro.

A administração anterior foi responsabilizada por todas as mazelas ocorridas em Bostanópolis a partir do início do século XV, quando o país foi descoberto por uma potência estrangeira da época.

Para os novos dirigentes e seu grande número de seguidores, alguns neo-covertidos ao partido situacionista por absoluta conveniência, Bostanópolis tivera apenas dois governos:

O anterior e o atual.

O antecessor foi o agente do mal, que vendeu o patrimônio público, massacrou o funcionalismo, foi responsável pela estagnação da economia, favoreceu o sistema financeiro…

Foi o grande satã.

Eles, o governo do bem, da estabilidade econômica, da redenção dos pobres, do orgulho nacional. Não se diziam infratores da ética nem coniventes com a corrupção que se instalou no país.

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Amanhã, novo episódio Não perca!