Deus por um dia
O que você faria se pudesse ter por um dia todos os poderes de Deus? Se por um segundo você pensou em resolver os seus principais problemas, não se sinta culpado; saiba que esta seria a primeira escolha da maioria dos bilhões de seres humanos espalhados pelo planeta. Esta é a tônica de “Todo Poderoso” – ótima comédia estrelada pelo canadense Jim Carrey, que tem uma atuação tão brilhante quanto em “O Show de Truman”, filme de 1998 que lhe rendeu o Globo de Ouro de Melhor Ator Dramático.
Apesar dos filmes de Carrey serem sempre classificados como comédias – talvez por causa de suas incursões mais conhecidas no cinema (a exemplo de “Ace Ventura”, “Debi e Lóide” e “O Máskara”), “Todo Poderoso” (de 2003), na verdade, chega a ter momentos bem próximos de um drama. É certo que não dá para não rir das caras, bocas e cacoetes dessa cria irretocável de Hollywood. No entanto, ao contrário do que muitos cinéfilos puritanos possam dizer, ele é ator de primeiro time.
Em “Todo Poderoso” Jim Carrey é Bruce, um repórter que não consegue deslanchar na carreira e que sonha em ser âncora do telejornal da TV onde trabalha. No entanto, seu cotidiano profissional se resume a reportagens triviais e sem importância, sempre pautadas pelo lado cômico. Sua vida afetiva, vivida com a professora Grace (interpretada pela ótima atriz Jennifer Aniston, a eterna Rachel da série Friends), também parece não ter o brilho que espera, o que o faz se sentir ainda mais frustrado e revoltado com seu destino.
Sem ter a quem culpar, Bruce descarrega toda a sua ira em Deus – responsabilizando-o por todo seu fracasso na vida. É aí que ele recebe uma proposta surpreendente do próprio Todo Poderoso (muito bem encarnado pelo veterano Morgan Freeman): ficar em seu lugar por uma semana, desfrutando de todos os seus poderes e obrigações. A única regra a ser observada no suposto presente seria o respeito ao livre-arbítrio das pessoas, no qual não conseguiria interferir. A partir daí a história se desenrola com cenas hilárias e com momentos dramáticos (que, claro, não farei a indelicadeza de contar).
De uma certa forma, “Todo Poderoso” tem muito a ver com “Deus é Brasileiro” – filme de Carlos Diegues estrelado por Antônio Fagundes (no papel de Deus). Ambos mostram os rumos espirituais escolhidos por boa parte de nós; rumos estes marcados pela fé interesseira e egoísta, que faz o ser humano se voltar para o Pai-do-Céu de acordo com suas próprias conveniências e apenas para pedir. Pior até: as orações costumam ser verdadeiras súplicas financeiras, como se a felicidade ou infelicidade das pessoas se resumisse a este aspecto.
Os dois filmes também enfocam o perigo de se dar qualquer tipo de poder ao homem, mesmo sem a dimensão e abrangência divinas. Para inúmeras pessoas ter poder é estar acima do outro, é legislar em causa própria, é encontrar saídas tão-somente para seus próprios problemas. Exatamente o contrário a tudo o que se imagina querer o Criador.
Tanto em “Deus é Brasileiro” quanto em “Todo Poderoso” o momento mágico da história acontece quando os personagens que ambicionam o poder divino percebem que é impossível tê-lo sem o desnudamento do egoísmo, da ganância e do desamor ao próximo.