A Paixão de Cristo I

Confesso que relutei em assistir o filme do ator e diretor Mel Gibson, quando do seu lançamento. O ambiente emocional, crivado de beatos e fanáticos, causava-me repulsa. No feriado de 7 de setembro de 2006, finalmente, assisti A Paixão e, como num filme histórico normal, pude tirar um bom proveito da sensibilidade e da pesquisa dos seus idealizadores.

O idioma adotado (aramaico), de som gutural, como o idioma árabe, traz-nos a sensação, quando elevado o tom de voz, que lhe altera o timbre, de invocação ou avocação, causando-nos uma impressão inspirativa. De outro lado, ouvimos alguns trechos do latim corrente – nossa língua mãe – muito bonita e concisa.

No plano político–ideológico e religioso, o filme inicia-se com o conflito psicológico judaico – cristão da tentação. Esta tentação, que nos afeta a identidade individual e social, muito perceptível, dadas as circunstâncias em que viviam os judeus, naquela época, sob o jugo do império romano. Quer dizer, um povo saído do Egito, em situação comparada a de escravo, e que construíra a sua identidade social, então ameaçada pelos invasores.

Jesus, sobretudo, era um líder, um exemplo a ser seguido, que incorporou o personagem do Messias, cujo destino estava prescrito nas sagradas escrituras.

O filme nos mostra, também, a distância cultural entre uma sociedade estruturada pelo direito – como a romana - e uma sociedade eminentemente teocrática – como a judaica. Mostra-nos a surpresa e decepção de Pilatos, quando questiona os judeus, que lhe trazem Jesus, já mutilado, sem julgamento ou condenação. Noutros momentos, quando absolvido pelo mesmo e por Herodes, Jesus é trazido de volta e lhe exigem a pena de morte e de crucificação, e, ainda, quando preferem destinar o perdão ao criminoso Barrabás. Percebemos, nestas cenas, o abismo entre a civilização romana, que não misturava mais o direito à religião, e a barbárie teocrática. O mesmo modelo de teocracia que impera, nos tempos atuais, no oriente, pelas mãos dos radicais fundamentalistas, a mesma teocracia que imperou na era medieva pelas mãos dos (pasmem) cristãos!

Sob o aspecto religioso, e não poderia ser de outra forma, deparamos com o diálogo de Pilatos com Jesus sobre a verdade, e, entre Pilatos e sua esposa Cláudia, quando esta responde que a verdade haveria de ser percebida apenas, o que, em resumo, constitui a teoria da fé para todas as religiões.

O sacrifício e a crueldade infligidas a Jesus pecam pelo excesso da resistência sobre-humana, mas não pelos meios empregados. Naquela época, os instrumentos adotados, conta-nos a história, eram aqueles mesmos, utilizados no filme. A crueldade, a humilhação, o açoitamento com a opção de diversificados chicotes, a cruz, eram realmente os meios de punição empregados. A história registra que em um só dia os romanos crucificaram oitocentas, isto mesmo, oitocentas, ou mais pessoas. Já imaginaram o pesadelo de um ambiente com oitocentas pessoas morrendo crucificadas, cercadas de amigos e familiares em desespero?

O que muitos criticam é se Jesus, como um ser humano , resistiria a tanto espancamento, antes da crucificação. É que o drama real, histórico, de Cristo, confunde-se mesmo com a dramaturgia dos evangelistas e a dramaturgia cênica. Mas quanto aos meios empregados não podemos esquecer de que outros existiam na mesma ou em outras culturas e épocas, como o empalamento, o desmembramento em rodas ou mesas elásticas, a estripação, a morte em fogueira, a forca, a decapitação em guilhotina ou pelo sabre, o apedrejamento, o tiro na nuca, e vai por aí afora.

Por fim, observamos a fidelidade aos quadros clássicos da paixão. A cena da crucificação, da retirada de Jesus da cruz, no colo de sua mãe Maria (A Pietá), são de expressões pictóricas.

A Paixão acaba por ser um filme mais fiel à história que muitos outros já produzidos com propósitos carismáticos.

Di Amaral
Enviado por Di Amaral em 20/01/2008
Reeditado em 20/11/2014
Código do texto: T824818
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2008. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.