O Substituto (Detachment)
O Substituto (Detachment, no original) é um drama produzido nos EUA, dirigido por Tony Kaye (A Outra História Americana, 1998), lançado no ano de 2011. Mais do que escancarar o fracasso do modelo educacional atual, Detachment é um ensaio do caos das relações humanas na pós-modernidade, as quais são imersas em melancolia, solidão e confusão. Com uma atuação exemplar, Adrien Brody, vencedor do Oscar em O Pianista (2003), junto a um elenco muito competente, conduz com maestria a história do professor temporário Henry Barthes em sua tentativa de se adaptar à realidade difícil de uma escola pública.
Henry Barthes é um professor suplente que carrega muitas angústias dentro de si advindas de um passado traumático, razão pela qual transita de escola em escola sem criar vínculos ou se comprometer com ninguém, apesar de seu dom para lecionar. Entretanto, sua vida muda ao entrar em contato com três mulheres - uma garota de programa, insensível pelos sucessivos abusos, uma professora, com a qual cria intimidade, e uma aluna com relações familiares conturbadas e vítima de bullying. Assim, O Substituto nos lança em meio a um turbilhão de dramas pessoais e sociais que se descortinam perante a nossa vista, gerando profundas reflexões.
A palavra “Detachment”, do título original, remete a um estado de indiferença, desapego e distanciamento. Logo no inicio, isso fica explícito pela frase de apresentação: “Nunca me senti tão profundo e ao mesmo tempo tão alheio de mim e tão presente no mundo.” Através dessa epígrafe do escritor, filósofo e romancista Albert Camus, o filme nos insere numa atmosfera de não-lugar, de não pertencimento, de incerteza a qual ele faz questão de reforçar em diversos momentos por meio de metáforas e simbolismos. Quer seja pelo uso de câmeras subjetivas, de close-ups frequentes, texto instigante ou pelos papéis bem construídos, Detachment tenta nos aproximar dos dramas existenciais de cada figura, numa tentativa de despertar empatia e conexão com o seu mundo.
“A maioria dos professores aqui, em determinado ponto, acreditava que podia fazer a diferença”
Alunos desencantados e sem perspectiva, docentes frustrados e cansados. Essa é a situação da escola onde o professor Henry Barthes é chamado a atuar - realidade presente em muitas outras. Tão logo chega ao local, a diretora Carol Dearden (Marcia Gay Garden) o coloca a par da realidade da instituição e o orienta apenas a “ministrar o currículo”, e a colocar alguma ordem nos alunos. No seu primeiro dia de aula, ele encontra jovens problemáticos e revoltados que o desafiam e insultam. Um desses estudantes chega a arremessar a pasta de Henry para longe. No entanto, a sua reação é, no mínimo, surpreendente e serve para definir a tônica do drama: “Esta pasta não possui nenhum tipo de sentimento, está vazia. Eu também não tenho sentimentos para você ferir” - Uma resposta que evidencia uma grande angústia interior.
Vazio. Tal sentimento se deve, essencialmente, às sombras de seu passado. Durante sua infância, a mãe de Henry - um importante elo de conexão emocional com o mundo - cometeu suicídio. A razão desse ato desesperado sempre o perturbou. Havia suspeitas de que ela sofria algum tipo de abuso de seu avô (o pai dela), mas o filme nunca faz questão de esclarecer o que realmente aconteceu, exceto por meio de alguns rápidos flashbacks que servem mais para nos colocar dentro da confusão mental das memórias do próprio professor do que para explicar alguma coisa. Contudo enquanto precisa cuidar de seu avô, hoje doente e com mal de Alzheimer, ele tenta extrair a verdade, fornecendo-lhe diários para que escreva alguma coisa que elimine as suas dúvidas e incertezas sobre seu passado.
Paralelamente a essa situação, em meio a sua rotina na nova escola, Henry entra em contato com a estudante Meredith (Betty Kaye), vítima de bullying e da negligência dos pais. A jovem é fotógrafa e tem fortes inclinações artísticas, porém sofre com as expectativas e cobranças que a sociedade e a família exercem sobre ela. Como forma de externalizar a sua tristeza e solidão, ela captura diversas imagens de professores e alunos em seus momentos de distanciamento e melancolia. Devido à atitude do professor em repreender um dos alunos que a havia ofendido durante a sua aula, ela passa a confiar naquele que parecia ser o único a se importar com ela, numa tentativa de suprir a sua carência afetiva. Assim, o docente passa a ser o alvo da maior parte de seus cliques, pois ela parece ter se identificado com o próprio sentimento de tristeza que sempre o acompanhava.
Além de Meredith, Henry conhece a professora Sarah Madison (Christina Hendricks) com quem cria certa afinidade. Aqui ela é caracterizada como uma pessoa comprometida, porém, muito autocentrada. Em dado momento, quando os dois saem num encontro, ela parece se preocupar unicamente em falar de si mesma, evidenciando não apenas uma necessidade quase mórbida de ser ouvida como também uma indiferença quanto aos sentimentos do outro. A falta de empatia e o egoísmo exagerado é um dos pontos de maior crítica do longa.
Contudo a personagem cuja presença é mais determinante na vida de Henry é, sem dúvida, a jovem garota de programa Erica (Sami Gayle), com a qual o professor substituto cria um vínculo quase fraternal. Na primeira vez que os dois se vêem, ela tenta se insinuar, no que ele recusa prontamente e se afasta. Depois, porém, ele se sensibiliza e a acolhe em sua casa, dando-lhe cuidados e tratando-a quase como se fosse a sua filha. Erika constitui, claramente, uma figura feminina de referência, substituindo o buraco que a perda de sua mãe lhe causou. Vale, aqui, destacar a cena onde os dois se conhecem. Enquanto voltava para a sua casa, após o término de suas atividades, ele se depara com a menina no fundo do ônibus. O enfoque no rosto do ator Adrien Brody evoca uma profunda dor ao presenciar a jovem em meio a suas atividades. Os cortes que alternavam para a moça, sugerindo o ato, e a face do professor que procurava dar o apropriado sentido ao absurdo que acontecia ao seu lado, são de uma sensibilidade pouco antes vista por este que vos fala. Impossível não se comover.
Outros dramas também são abordados, como o da pedagoga Doris Parker (Lucy Liu) que tenta, em vão, ajudar os alunos a enxergarem os seus problemas, o da diretora Carol Dearden (Marcia Gay Harden) que se tornou completamente dependente da escola e não consegue aceitar o fato de que será demitida em breve, ou o reitor da escola, que serve também de alívio cômico para a trama. Esse último faz uso recorrente de pílulas antidepressivas (pílula feliz) e age de forma bem humorada, fazendo piadas e brincando com as situações problemáticas dos alunos, por que, segundo ele, seria impossível suportar a pressão de outro modo.
A narrativa é, em parte, feita num tom documental, através de relatos de professores que compartilham as suas experiências com o ensino, no começo do filme, e também do próprio personagem central, Henry Barthes, que, nesse caso, se estendem ao longo de toda a história. Nesses momentos, o suplente aparece com uma aparência desleixada, em um fundo de cor sépia, dando a entender que tal entrevista foi feita após os acontecimentos do filme. Já no caso dos outros professores, fica tudo em preto e branco, como que para transmitir a sensação de que se tratava de um documentário histórico, de fatos presentes há muito tempo na sociedade.
A linguagem poética evidencia-se em O Substituto como um de seus elementos mais notórios. As simbologias, os quadros, o estilo de filmagem e as falas dos personagens demonstram uma grande preocupação em se criar uma diegese coesa e bastante rica. Um dos elementos que reforçam essa ideia está na utilização de pequenas animações, dentre os eventos da trama, com giz e lousa, como se expressasse estados emocionais latentes associados a cada cena. O desconforto, a frustração, a raiva e o desespero estão devidamente representados. É quase como se o diretor tivesse a intenção de incutir à força tais emoções em nós, atravessando a nossa própria indiferença.
Outro destaque são as aulas ministradas pelo substituto. Embora sejam poucos, os monólogos do professor em sala de aula são profundos e provocadores. Ele critica, num deles, as imposições da mídia e o mar de propagandas publicitárias que criam ditames sobre condutas e padrões de comportamentos esperados por parte do público, o qual é manipulado. Ele cita um dos grandes clássicos de George Orwell 1984 levando-nos a constatação da onipresença midiática, da qual é quase impossível fugir. Grande parte das ansiedades e atrasos nos desenvolvimentos dos jovens acontece em razão das incoerências e mentiras propagadas por ela. No entanto, para combater a assimilação daquilo que ele chama “Holocausto Publicitário”, ele aponta os livros e a leitura como o melhor modo de defender a mente e a consciência da alienação e controle constante: “Temos que aprender a ler, para estimular a nossa própria imaginação, para cultivar a nossa própria consciência, nossos próprios sistemas de crenças. Todos nós precisamos dessa competência para nos defender, para preservar as nossas mentes”.
A própria escola é um personagem a parte. Na fala de um dos próprios personagens: “Sempre achei que essa escola tinha uma alma. Ela não é só um monte de prédios antigos, eles estão vivos”. São vários os momentos em que a câmera percorre os corredores dos prédios, muitas vezes vazios, pouco iluminados - uma representação bastante dramática. Esse recurso faz alusão ao abandono e vazio tanto da escola enquanto instituição como dos jovens que ali estão. Em certo ponto, o foco em determinados objetos, como as carteiras e cadeiras vazias na reunião de pais, evidencia a negligência dos mesmos. Em outra cena, a imagem da diretora se confunde com os armários e parede vermelhos, uma vez que ela se apresentava com vestimentas da mesma cor, mostrando o quanto a identidade dela estava ligada àquele ambiente do qual teria que se afastar.
“Quando se anda pelo corredor ou se está na sala, quantos de vocês já sentiram o peso, fazendo pressão para baixo em vocês? Eu já.”
O Vazio e a melancolia são sentimentos presentes em praticamente toda a película. A todo instante, somos confrontados com dilemas de figuras que parecem invisíveis à sensibilidade alheia. Em dado momento, por exemplo, um dos professores estava colado à grade da escola olhando para o céu, quando Henry o nota e lhe dirige a palavra. O professor, atônito, diz: “Você me enxerga? Está me vendo aqui? Obrigado.” Em outra cena, Meredith diz sentir que o substituto é o único a notá-la e a parecer se importar. Depois, mais próximo do final do filme, durante um diálogo entre o protagonista e a professora Sarah, ele diz que não está ali. Ela poderia até enxergá-lo, mas ele, segundo suas próprias palavras, era invisível.
Em uma referência ao famoso conto “A Queda da Casa de Usher” do mestre Edgar Alan Poe, o professor Henry relaciona a descrição da casa, num estado de decadência e ruínas, a um estado de espírito. As frustrações, angústias, incertezas, fracassos e sensação de impotência descrevem com precisão a alma do professor. Aqui ele não é representado como uma figura heróica, infalível. Ele é um ser humano, como qualquer um de nós. Além disso, apesar de ocorrer um desenvolvimento do personagem, não existe solução fácil. O prognóstico que O Substituto nos oferece é bastante realista. Esse talvez seja o aspecto que mais o distinga de outras filmagens semelhantes, onde o docente resolve todos os problemas de forma mágica ou miraculosa.
“Temos essa responsabilidade de guiar os nossos jovens, para que eles não acabem se desmoronando, para que não acabem caindo no esquecimento, se tornando insignificantes”
Com o advento da globalização, as distâncias fronteiriças se encurtaram graças aos avanços da tecnologia, todavia as relações interpessoais sofreram um paradoxal distanciamento. Devido à instabilidade e fluidez de empregos, pessoas e informações que atravessam o nosso cotidiano, o tempo todo, nos tornamos insensíveis, indiferentes à dor e carências alheias. O Substituto tenta mais do que apenas mostrar, ele faz um grande esforço no sentido de despertar um real sentimento de reconhecimento no espectador, de entendimento, de compaixão e de desconforto com o atual estado de coisas. Empatia. Essa palavra resume o motivo principal de termos fracassado enquanto sociedade, pois ela parece inexistir nos tempos atuais. Todavia Detachment oferece uma esperança no fim do filme, uma alternativa à total desolação e caos da humanidade como um todo. Cabe, portanto, a cada um de nós assumirmos a responsabilidade por sermos a mudança que queremos ver no mundo.