Retirante espiritual

Popularizado na Europa na primeira metade do século 20, quando as duas grandes guerras mundiais obscureceram os ideais de progresso e otimismo da humanidade, o Existencialismo colocou o ser humano no centro do palco de seus próprios dramas. Este movimento filosófico-literário ganhou os holofotes do grande público na França, a partir das obras do casal de filósofos e escritores Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir.

Genuinamente ateu, o Existencialismo tem uma base simples: não há uma essência humana pré-definida. Portanto, o existir é algo a ser constantemente construído, e o ser humano é o seu único artífice. Ele é livre para escolher seus caminhos, quaisquer que sejam.

Mesmo não sendo ateu, vejo nas bases existencialistas um aspecto importantíssimo para a trajetória de qualquer pessoa: a necessidade de um tomar para si as rédeas do próprio destino. Algo que filósofos cristãos como Santo Agostinho e São Tomás de Aquino apontaram como o livre-arbítrio já inserido por Deus em nossa essência.

Mesmo também sendo alvo das inquietações e angústias que acometem qualquer pessoa, segundo preconizam os existencialistas, tenho na espiritualidade o principal caminho para alguma redenção. Lembro-me bem da sensação de esperança que me acometeu ao assistir a "Sete Anos no Tibet" - filme de 1997, dirigido por Jean-Jacques Annaud e estrelado por Brad Pitt.

O seu enredo é inspirado na história real do alpinista austríaco Heinrich Harrer, que no início da década de 1940 tinha como maior desafio escalar um dos picos mais altos do Himalaia, o Nanga Parbat. Famoso à época e também conhecido por ser egocêntrico, arrogante e obcecado pela glória pessoal, Harrer partiu para a sua grande aventura, deixando para trás o casamento em crise e a esposa grávida.

A sua vida muda radicalmente quando se vê prisioneiro dos ingleses, que tinham acabado de declarar guerra à Alemanha nazista. Ele se encontrava na Índia, território sob domínio britânico. Após várias tentativas, consegue fugir na companhia de outro alpinista, Peter Aufschnaiter (no filme interpretado por David Thewlis).

Os dois vão parar no Tibet, na cidade sagrada de Lhasa, onde reside o Dalai Lama - líder supremo do budismo tibetano. Este é o passaporte para uma lenta e ampla transformação em seus conceitos. Os sete anos que Heinrich Harrer passou naquele país isolado do mundo (hoje território chinês) foram apontados por ele como reveladores e responsáveis por mudanças profundas em sua vida.

Guiado por princípios espirituais e por práticas completamente diferentes da sua formação, o alpinista também foi responsável pelo novo caminho trilhado. De certa forma, máximas existencialistas e religiosas deram a ele a régua e o compasso de que fala Gilberto Gil. "Meu caminho pelo mundo, eu mesmo traço", ressalta o compositor baiano na canção "Aquele abraço".

Em algum momento, todos precisamos ser retirantes espirituais. Bom seria poder passar sete anos no Tibet, na Índia, em Bhutão, longe um pouco das concepções de mundo tipicamente ocidentais. Na falta, dá para encontrar refúgio nas reflexões socráticas baseadas no "conhece-te a ti mesmo".