O estopim da ira
Dizia o filósofo Lucius Annaeus Sêneca que a ira é normalmente resultante das expectativas que as pessoas criam em suas vidas. Quando não atendidas, estas expectativas se transformam em frustrações, que são como barris de pólvoras prontos para explodir.
O pensador romano, que viveu na mesma época de Cristo, ilustrava esse quadro comparando os seres humanos a cães amarrados a uma carroça em movimento. A correia longa é o bastante para lhes proporcionar alguma liberdade, mas não o suficiente para permitir que cada um vá para onde quiser.
Nada é mais contemporâneo e cotidiano do que a ira. Ela ainda é a mola-mestra em boa parte das relações humanas, tanto no âmbito coletivo das sociedades quanto nos micro-universos familiares.
A ira descrita por Sêneca está bem ilustrada no filme "Um dia de fúria", dirigido por Joel Schumacher e estrelado pelo ator Michel Douglas. Esta obra de 1993 tem um enredo simples, uma fotografia corriqueira e uma trilha sonora comum. No mais, as cenas de violência são bem típicas de filmes hollywoodianos.
Essa mistura não tão atrativa é, na verdade, uma das melhores abordagens que já vi sobre a ira que brota da impessoalidade predominante nos grandes centros urbanos. Ela revela nuances interessantes sobre a perspectiva da democracia no âmbito das relações interpessoais.
"Um dia de fúria" conta a história de William Foster - um homem que, desempregado e separado, vive uma fase difícil. Sua vida muda radicalmente no dia em que ele resolve atravessar a cidade a pé só para levar um presente de aniversário para a filha. A decisão de ir caminhando acontece depois que ele abandona seu carro em meio a um monstruoso engarrafamento, com buzinas, gritaria e xingamentos típicos desse tipo de cenário.
A trajetória desse homem pelas ruas de bairros pobres e ricos da cidade o coloca diante de problemas banais, mas suficientemente fortes para acordá-lo para uma realidade insuportável e capaz de desencadear a mais imprevisível fúria humana. Numa das primeiras cenas, após o abandono do carro no engarrafamento, Foster se senta numa praça para pensar na vida. De repente, é incomodado por dois rapazes que se dizem "donos do pedaço". Calmamente, ele pede que o deixem em paz, argumentando que está tendo um dia difícil e que gostaria apenas de levar um presente para a filha. Sem sucesso, um dos rapazes puxa um canivete para intimidá-lo. Foster finge que entregará a sua pasta e apanha um taco de beisebol, que é usado com brutalidade contra os dois.
Essa é só a primeira de uma série de agressões praticadas pela personagem, que deixa um rastro de violência, a ponto de despertar a atenção da Polícia. O restante do filme revela a transformação radical de um pacato cidadão em um homem frio e violento, capaz de quebrar uma loja inteira apenas por causa do comportamento antiético de seu proprietário e de usar uma bazuca para mostrar que uma obra na rua está sendo feita para justificar a verba exorbitante que o Governo recebe para gastar com o setor.
Duas outras cenas chamam a atenção: a primeira revela a indignação pelo mau atendimento que Foster recebe em uma lanchonete; e a segunda, quando ele atravessa um imenso campo de golfe onde dois milionários idosos se divertem e questionam a sua intromissão. Nos dois casos, somente o uso da intimidação é capaz de fazer as pessoas ouvirem um homem atormentado.
Provavelmente todos já vivenciaram situações cotidianas em que a revolta aflora em decorrência da falta de respeito, do descaso, da ignorância e do egoísmo. Eis apenas alguns dos muitos motivos para aniquilar qualquer ideia de democracia e intersubjetividade e para trazer à tona a essência da ira sublinhada por Sêneca.