Adeus aos heróis
Vivemos numa época de sobreviventes, não mais de heróis. Até porque os heróis, se existissem, sequer saberiam contra quem ou o que lutar.
Já perdemos a conta de quantos super-heróis renasceram nas telas de cinema só na primeira década deste novo milênio. Não super-heróis novos, frutos da era cibernética, mas os antigos, que reinaram absolutos nos gibis do século 20 e povoaram a imaginação de incontáveis gerações. Super-Homem, Batman, Homem-Aranha, Capitão América, Homem-de-Ferro, Lanterna Verde, Surfista Prateado, Thor, Demolidor... Todos eles voltaram, mas não para trazer à tona reflexões e debates sobre ética, mas para reforçar a tese de que vivemos dias de angústia e solidão.
Após mais de 20 anos, quando meus olhos recém-saídos da adolescência brilhavam com todas as causas heróicas que ainda norteavam a minha geração, senti vontade de novamente assistir à "Spartacus". O filme, de 1960, é dirigido por Stanley Kubrick, que mais tarde surpreenderia o universo cinematográfico com três obras sensacionais: "2001, uma Odisséia no Espaço" (1968), "Laranja Mecânica" (1971) e "O Iluminado" (1980).
Ambientado na Roma republicana antes de Cristo, onde democracia e escravidão conviviam como se fossem conceitos complementares, Spartacus (interpretado por Kirk Douglas) é o que se pode chamar herói sem super poderes. Seu heroísmo, certamente ingênuo numa perspectiva contemporânea, reside numa retidão de caráter capaz de movê-lo para além das suas próprias paixões e interesses pessoais.
Nascido escravo e tratado como espólio de guerra do império romano, Spartacus é a personagem que aceita uma missão heróica, mesmo sem ter a noção de tal dimensão. Ao liderar uma grande rebelião de escravos, colocando em xeque a supremacia de Roma, suas leis e seu poderio militar, o ex-gladiador faz uma escolha sem volta.
Ao contrário de todos nós nestes tempos sombrios de inimigos sem rostos, Spartacus se recusa a ser um sobrevivente. Ele é o verdadeiro super-homem descrito pelo filósofo alemão Friedrich Nietzsche; aquele capaz de superar a si mesmo, suas próprias fraquezas, construindo a sua fortaleza através das escolhas conscientes. O super-homem nietzscheano não aceita os modelos preestabelecidos de moral e ética (até porque eles podem estar podres, como na Roma antiga e em outras nações dos nossos dias); ele acredita em suas convicções e luta por cada uma delas.
"Spartacus" é um épico triste. Revê-lo tantos anos depois me trouxe uma constatação também triste: eu não acredito mais em heróis. Alguns amigos riem quando conto que até hoje, aos 41 anos, continuo a sonhar voando. Sim, voando como Super-Homem e tantos outros heróis que imitei na infância, com uma toalha amarrada às costas. Nestes sonhos esporádicos eu simplesmente tenho o poder de esticar os braços e alcançar o céu.
É óbvio que, logo depois da infância, eu deixei para trás qualquer crença na possibilidade de existência desse tipo de (super)heroísmo. Mas continuei acreditando na verossimilhança de seres humanos como Spartacus. O adeus agora é mesmo aos heróis como ele.