Temperos da vida
Odores e sabores estão intimamente ligados à memória e são pontes estreitas entre passado e presente. Todos, de uma forma ou de outra, guardam alguma lembrança de comidas e perfumes que remetem à infância, à adolescência, a momentos marcantes, normalmente carregados dos mais variados sentimentos.
Recentemente vivenciei, por duas vezes, algumas frações de segundos que me remeteram a passagens marcantes do meu tempo de criança, na década de 70, lá na minha Boa Nova-BA. O passaporte? Cheiros de comida.
Da primeira vez eu tinha saído de casa pouco depois das 7h30min. Estava próximo a uma praça do Centro de Viçosa-MG (cidade em que resido), onde fui tomado por um súbito cheiro de banana frita e canela. Não sei de que direção veio, mas instantaneamente me arrebatou com uma cena inteira: eu, com meus 7 ou 8 anos, chegando à casa de um tio muito querido, onde sempre passava para ir com meus primos à escola. Era comum encontrá-los ainda tomando café da manhã. Vale lembrar que na Bahia há o costume de se comer banana frita (polvilhada com açúcar e canela) como acompanhamento do café, e não no almoço ou no jantar.
Na segunda vez, também numa rua qualquer do Centro da cidade, senti uma mistura de cheiros, os quais não consegui distinguir naquele exato momento. Tudo foi muito rápido e intenso o bastante para me fazer lembrar dos jantares da minha casa no tempo em que as principais refeições eram feitas à mesa da copa, sempre rodeada por sete pessoas (meu saudoso pai, falecido há cinco anos, minha mãe, minhas três irmãs, meu irmão e eu). Conversávamos, contávamos casos, ríamos e saboreávamos as delícias que a mão-de-fada da minha mãe preparava. Eu adorava a simplicidade do seu arroz soltinho com farofa de cenoura, ovo frito e carne-de-sol (no Nordeste falamos “carne-do-sol”). No momento em que senti o cheiro que me trouxe aquele instante feliz, certamente algum ingrediente desta mistura estava presente.
Contei tais experiências olfativas para comentar um filme que me emocionou bastante. “O Tempero da Vida” – produção greco-turca, de 2003, roteirizada e dirigida por Tassos Boulmetis – é uma daquelas obras do cinema que não ganham badalação na mídia nem entram no circuito comercial. No entanto, têm conteúdo, são belas e inesquecíveis.
O filme conta a história de Fanis, um grego que teve uma infância feliz em Istambul, na Turquia, marcada principalmente pelos ensinamentos do seu avô – dono de uma loja de especiarias, cheio de sapiência, que costumava ensinar sobre astronomia, amor e relações humanas a partir da culinária e da magia dos temperos. Fanis, claro, viu a sua existência ser impregnada por tal figura e seus ensinamentos.
Obrigado a deixar a Turquia com seus pais, por questões de ordem política, o menino vai para Atenas, na Grécia, deixando para trás o avô, um amor de infância e as melhores referências de sua vida. Aos 45 anos, na condição de um professor bem sucedido, Fanis se vê impelido a retomar o passado em busca de respostas que ficaram adormecidas.
Todos nós temos experiências que dariam grandes enredos para o cinema. Alguns filmes, nos moldes de “O Tempero da Vida”, contam histórias de pessoas comuns que se vêem enredadas por suas próprias trajetórias. É o caso de "O Caminho para Casa" (do chinês Zhang Yimou), “Balzac e a Costureirinha” (do também chinês Dai Sijie), “Como Água para Chocolate” (do mexicano Alfonso Arau), “A Excêntrica Família de Antônia” (do holandês Marleen Gorris), "Conversas com meu Jardineiro" (do francês Jean Becker) e “Cinema Paradiso” e “O Homem das Estrelas” (ambos do italiano Giuseppe Tornatore). Ao desenrolarmos o grande novelo que nos leva a tempos longínquos, vai surgindo tudo aquilo que precisamos reencontrar e resgatar.