As crianças veem outro mundo
Assistir ao filme “O ano em que meus pais saíram de férias”, que representou o Brasil no Oscar 2008, aguçou a minha curiosidade em saber como as pessoas que viveram a infância na década de 70 guardaram esta época na memória. No auge da ditadura militar muitas crianças brasileiras certamente tiveram suas vidas marcadas pela perda de pais, irmãos e outros parentes próximos de forma misteriosa ou mesmo por histórias de abandono repentino, sem qualquer explicação.
Esta é a história de Mauro (personagem do ótimo ator Michel Joelsas), que tinha 12 anos em 1970, ano em que a maioria dos garotos de sua idade vivia a paixão pelo futebol, incentivada pela inesquecível seleção brasileira do tricampeonato mundial, com Pelé, Tostão, Rivelino, Gerson e outros craques. O filme, dirigido por Cao Hamburger, desenrola-se a partir do momento em que ele é subitamente tirado de sua pacata rotina em Belo Horizonte para ser levado à casa do avô em São Paulo, onde deveria passar uma temporada. A única explicação que teve dos pais para aquela mudança de vida brusca foi que eles estavam saindo de férias e que retornariam antes da Copa do Mundo começar.
Sua chegada a São Paulo e tudo o que acontece no desenrolar do filme mostram o que significou a década da truculência e do patriotismo verde-e-amarelo para milhões de pessoas, em especial para as crianças. Estas podiam até sentir algo estranho “no ar”, mas tentavam levar as suas vidas dentro da normalidade que lhes era possível.
Eu e muitas crianças que viviam em realidades parecidas com a minha na década de 70 fomos realmente privilegiados. Crescemos sem saber o real significado dos desmandos dos sucessivos governos militares, que se estenderam por mais de vinte anos no País. O fato de morarmos numa cidade pequenina da Bahia – ilhada do mundo pelos poucos aparelhos de TV existentes e pela falta de jornais, telefone, luz elétrica em tempo integral e de estrada asfaltada até a principal rodovia (a BR 116) – nos fez vivenciar uma espécie de universo paralelo.
Lá, pelo menos para as crianças, a vida se resumia à escola e ao restante do tempo dividido entre os deveres de casa e as inúmeras formas de brincar que tínhamos ao nosso dispor. Praticamente todas as residências tinham quintais, que eram aproveitados à exaustão. Sem contar que as ruas e calçadas eram desertas o suficiente para serem usadas como campos de futebol e espaços para outras brincadeiras. Tínhamos serras, matas, rios e cachoeiras ao alcance das pernas. Em cada casa havia um fogão de lenha, que lançava no ar, via chaminé, os cheiros maravilhosos das muitas guloseimas que ali preparavam.
Ao contrário de Mauro e de outras crianças que foram enredadas pelo clima de terror promovido pela ditadura militar, eu e meus amigos de infância víamos na TV tão-somente o Sítio do Pica-Pau Amarelo e a “novela-das-seis”, normalmente com temas de época. Lembro-me bem que eu tinha “medo” da vinheta do Jornal Nacional, ao qual nunca assistia, e que mal entendia aquele papel branco com timbre da Censura Federal que aparecia na tela da TV entre um programa e outro. A escolinha que freqüentei nos dois primeiros anos do chamado “Jardim de Infância” se chamava Emílio Garrastazu Médice. Nós, no entanto, só o chamávamos de “Garrafazul”.
Algo em “O ano em que meus pais saíram de férias” me fez lembrar também do filme italiano “A vida é bela”, do diretor e ator Roberto Benigni. Seu personagem, Guido, cria um grande artifício para proteger o filho pequeno das atrocidades de um campo de concentração nazista, para onde são levados.
As duas produções mostram que o olhar inocente da criança pode representar um diferencial determinante para a sua sobrevivência em situações extremas. O mundo, sob a ótica infantil, pode ter um certo colorido, mesmo em meio ao caos.