Um degrau acima da amizade
Não é tarefa das mais fáceis tentar entender a dimensão e alcance de sentimentos tão abrangentes e, ao mesmo tempo, tão triviais, como amor e amizade. Escrever sobre eles, então, é quase sempre um parto literário, embora ambos costumem rechear os refrões de grande parte das músicas adocicadas e chinfrins dos sucessos da hora. A diferença é o volume, a densidade e a leveza que moram nas palavras de cada um que se arvora a falar de amor e de amizade. É fácil perceber isso quando se lê um poema de Carlos Drummond de Andrade, depois de se ter engolido um tanto de versos indigestos que costumam nos ser impostos.
Até já tentei me enveredar pelos caminhos da poesia; cheguei a rabiscar coisas-com-cara-de-poema, mas logo vi que passei longe daquela medida drummoniana – eqüidistante dos extremos e capaz de aguçar as nossas percepções mais escondidas. Humildemente me rendi à constatação de que pretensões neste sentido ficam adiadas por tempo indeterminado.
Resta-me bendizer os que conseguem traduzir em palavras precisas as contradições (muitas vezes tornadas armadilhas) dos nossos sentimentos. A literatura brasileira é felizarda neste sentido e há nomes diversos e de épocas diferentes para encher os olhos dos leitores mais exigentes. Muitos deles escreveram sobre os temas mencionados no início, mas um deles – Rubem Alves – foi de uma precisão quase cirúrgica ao falar da amizade em uma de suas crônicas que leva exatamente este nome.
“(...) tudo o que fazemos na vida pode se resumir nisto: a busca de um amigo, uma luta contra a solidão...” Não que ele tenha dito que esta busca seja, de fato, por alguém em específico, mas, sim, pela possibilidade de, no encontro com a amizade, sentirmo-nos “COM” no mundo. Trata-se de um “COM” de “COM alguém”, de “COMunhão”.
O escritor mineiro continua a tecer a sua teia sobre o tema e diz que “a experiência da amizade parece ter suas raízes fora do tempo, na eternidade. Um amigo é alguém com quem estivemos desde sempre (...)”. A escolha dos amigos é como uma chance a mais de escolhermos uma nova família, desta vez sem pressupostos consanguíneos e sem, necessariamente, abandonar as amizades nascidas a partir do mesmo sangue. É fundir as palavras amigo e irmão para, numa só, dar a elas a força e a dimensão que já guardam separadamente. Um “amiguirmão” é como uma promessa de eternidade.
Caminhando para o fim de sua crônica, Rubem Alves aborda o que chamo de degrau acima da própria amizade: a sintonia dos que se amam sem fazer deste amor uma necessidade de posse, uma exigência de mais explicações. Ele diz: “(...) Com o amigo é diferente. Não é preciso falar. Basta a alegria de estarem juntos, um ao lado do outro. Amigo é alguém cuja simples presença traz alegria independente do que se faça ou diga. A amizade anda por caminhos que não passam pelos programas (...)”.
Todos têm muitas oportunidades de encontrar pela vida afora as mais variadas propostas de amizade. Há quem diga ser mais fácil achar uma agulha no palheiro do que se deparar com a amizade verdadeira esmiuçada pelo cronista. Talvez seja tão-somente um ponto de vista ingênuo da minha parte, mas é bem provável que os olhos mais indicados para procurar tal “ave rara” sejam aqueles que tenham se voltado inicialmente para dentro de seus próprios donos.