Revelações de um criado-mudo
Como já disse Caetano Veloso, “de perto ninguém é normal”. Todos, sem exceção, possuem as suas manias de estimação e, mais até, têm ao menos alguma “mancha” que desejam manter escondida a sete chaves e bem distante de qualquer biografia autorizada ou não.
Antes de “passar desta pra melhor” – se der tempo, claro! – é bom pensar em destruir tudo que pareça comprometedor sobre a sua vida, ainda que você diga que ela é um livro aberto. Se esse livro tiver, então, a “cara” das coisas do Marquês de Sade, não deixe nem cinzas! Ter o nome jogado na lama depois da morte, suja até os da quinta geração.
Pior do que tudo isso só mesmo testemunhar parte da sua vida ser revelada por um criado-mudo. É o que conta Mário Prata em uma crônica publicada há algum tempo, que me chamou a atenção pela maestria com que foi escrita e também por mostrar uma situação absolutamente possível de ser vivida por qualquer mortal. Pelo menos por qualquer mortal desorganizado e acostumado a manter as gavetas de uso pessoal que nem a canastra de Emília, a boneca de pano do Sítio do Pica-Pau Amarelo.
Narrado na primeira pessoa, Prata se coloca como protagonista de uma tragicomédia, talvez por acreditar que assim outras pessoas possam se sentir menos envergonhadas com suas próprias histórias verídicas. Ele conta que tudo teve início após uma mudança de apartamento dentro do mesmo prédio (saindo do décimo para o quarto andar).
Com a ajuda da namorada, são feitas várias “viagens” de elevador para se carregar as coisas miúdas. Foi numa das últimas que seus novos vizinhos – até então desconhecidos – puderam assistir a uma cena tão constrangedora que mil palavras não conseguiriam explicar os tantos detalhes flagrados despretensiosamente por olhares tão intrusos.
Com um criado-mudo nas mãos – daqueles que têm uma gavetinha – o cidadão deixa o elevador no andar do novo apartamento, enquanto duas famílias o aguardam para descer. Segundo ele, estavam ali em sua frente “pai, mãe, crianças e até uma avó” – a pior platéia para o que estava prestes a acontecer. De repente, numa estendida de braço para as apresentações de praxe, eis que a gaveta desliza para fora e derruba no chão uma infinidade de pequenas coisas jogadas ali durante anos.
Não adiantou tentar gingar o corpo para tentar segurar aquela verdadeira “Caixa de Pandora Pessoal”. Em segundos tudo se espalhou, revelando alguns itens bastante inusitados; os menos comprometedores foram pilhas usadas, moedinhas, fichas telefônicas (já extintas) e um despertador quebrado (marcando 10h10min do dia 23 de um mês e ano quaisquer), que rolaram barulhentos pelo hall. Em seguida a namorada (logo ela!) apanhou um par de brincos dourados que não lhe pertencia (nem ele tinha a menor idéia de quem o havia deixado ali...), sem falar de três camisinhas datadas de quatro anos antes, que encheram os olhos curiosos das crianças. Também se espalharam três edições antigas da Playboy (uma delas com Tiazinha), dois livros mais “cabeça” (pra amenizar um pouco aquele constrangimento todo), um menu de sua aula de culinária e um livrinho com o título “Ser Gay é Ser Alegre” (que ele disse ter sido mandado e escrito por um de seus leitores).
Aquele indiscreto criado-mudo ainda insinuou para os presentes outras possíveis facetas daquele novo vizinho. Lá estavam guardados (ou seria largados) uma cartela de Lexotan, uma de Frontal e uma de Zoloft; um tubo de Hipoglós e dois de KY Gel (um dos presentes viu aquilo e deu uma olhadinha para a esposa, que ficou vermelhinha!). Como se não bastasse sua namorada ter encontrado um papel em branco com um beijo de batom vermelho bem no meio (que ele jurou ser da afilhada), parou bem no pé de uma das crianças um Viagra (apontado como sendo uma amostra-grátis dada pelo amigo Jair, psicanalista que mora no apartamento 103). Uma situação realmente difícil de explicar...
Como finalizou Mario Prata, um simples móvel que ele achava mudo, em dez segundos contou pelo menos cinco anos de sua vida. Pois é, fica aí um alerta: se não der para mudar seu jeito desorganizado de ser, arranje um criado-mudo que tenha gaveta com chave.