Se eu quiser falar com Deus
Certa vez uma menininha de seus 5 anos, sentada no colo do pai, diante da TV, saiu do nada com essa: “se todo mundo amar bem muito, Deus acaba com a tristeza das pessoas?” Restou ao pai, diante de tão súbita pergunta, responder que certamente Ele teria poder para tanto. A garota havia chegado à sala em meio a uma das tantas imagens divulgadas do atentado terrorista aos Estados Unidos, em 11 de setembro de 2001.
Sabe-se lá quantas crianças como ela viram pela televisão aquelas e outras tantas cenas típicas da estupidez humana, espalhadas mundo afora? Como qualquer esperança de um futuro diferente depende dos que ainda estão nos primeiros passos dá para apostar na possibilidade do universo infantil possuir uma espécie de antídoto contra as piores doenças de gente grande.
O incrível é constatar como é simples para qualquer criança compreender o óbvio. Elas sabem intuitivamente que amor desinteressado é sinônimo de menos tristeza, menos dor, menos tudo de negativo que possa subtrair o que há de nobre na vida. A ponte feita pela garotinha da pergunta para chegar até Deus é, de alguma forma, parecida com a que propõe Gilberto Gil em sua canção “Se eu quiser falar com Deus”.
“Se eu quiser falar com Deus / tenho que ficar a sós / tenho que apagar a luz / tenho que calar a voz / tenho que encontrar a paz / tenho que folgar os nós dos sapatos, da gravata, dos desejos, dos receios / tenho que esquecer a data / tenho que perder a conta / tenho que ter mãos vazias / ter a alma e o corpo nus (...)”
Por não estarem normalmente dispostos a fazer nada disso, os adultos sequer conseguem abrir o canal que leva ao divino que há em si mesmos; sequer se propõem a começar procurando-o no espelho. Se somos todos fagulhas de Deus, então a melhor forma de oração é o claro reconhecimento desta condição. Ela é a partida e a chegada para a solução de todos – incondicionalmente todos – os problemas, inventados ou não.
“(...) Se eu quiser falar com Deus / tenho que aceitar a dor / tenho que comer o pão que o diabo amassou / tenho que virar um cão / tenho que lamber o chão dos palácios, dos castelos suntuosos do meu sonho / tenho que me ver tristonho / tenho que me achar medonho / e apesar de um mal tamanho alegrar meu coração (...)”
Todos os sofrimentos vividos desde os primórdios da humanidade já foram mais do que suficientes para se entender que eles são apenas um caminho que precisa ter fim. A esta altura não deveria mais ser necessário uma criança sugerir a fórmula para se acabar com a tristeza das pessoas. Uma fórmula de muitas implicações e esforços, é certo; mas a única opção em se tratando do sentido essencial de nossa passagem por aqui.
“(...) Se eu quiser falar com Deus / tenho que me aventurar / tenho que subir aos céus sem cordas pra segurar / tenho que dizer adeus / dar as costas, caminhar decidido pela estrada que ao findar vai dar em nada do que eu pensava encontrar.”
Essa soltura de que fala Gil talvez seja a linha atada a um ponto qualquer no lado de fora do labirinto; ou a bússola apontando o norte; ou quiçá o fim da estrada que nos leve a Deus (o que precisávamos encontrar).