Considerações sobre o artigo "Manifestações do patriarcado na legislação brasileira como discurso que legitima a violência contra a mulher”

José Erigutemberg Meneses de Lima

Fui distinguido com a leitura em primeira mão do artigo “Manifestações do patriarcado na legislação brasileira como discurso que legitima a violência contra a mulher”, assinado pela Pós-Doutoranda Lenice Kelner e a acadêmica Bruna Nogueira da Silva. A exclusividade muito me honrou por conhecer de perto as preocupações da doutora Lenice Kelner com a formação de jovens que optaram pela carreira jurídica e seu compromisso com a busca de meios que amenizem ou superem as mazelas da população encarcerada.

Neste sentido, indico a leitura de A Inconstitucionalidade das Penas Cruéis e Infame: da voz da criminologia crítica à voz dos encarcerados, obra derivada da tese de doutorado cujo objetivo basal é a “problematização da funcionalidade do sistema penal e da cultura punitiva crescente o que, sem precedentes, afronta o modelo estabelecido na Constituição Federal de 1988 (CF/88) com a banalização das penas de prisão cruéis, infamantes que indiretamente propiciam a morte dos encarcerados.” [1]

Do ponto de vista formal, o artigo atende aos requisitos da boa técnica redacional da produção acadêmica. Se olhado pelo ângulo material, a importância resulta de apanhado histórico, visando à gênese da violência contra a mulher, apontadas nas “questões biológicas das mulheres em relação aos homens, estas relacionadas a força braçal, que desde os primórdios da sociedade humana foram fundamentais para definir quem seria o líder das tribos e povoados”. No ponto, é de se observar que ainda hoje as mulheres não são representadas na proporção ideal em diversos órgãos públicos do executivo, do legislativo e do judiciário, bem como nas teias operativas das organizações sob os cuidados da iniciativa privada, provocando a degradação do papel da mulher na sociedade. Em pleno século XXI, infelizmente e sem sombra de qualquer dúvida, as mulheres são consideradas apêndices, objetos de cama e mesa, [2] dispendiosos troféus destinados à premiação às carreiras exitosas de idosos de posses, marias-gasolinas de estrelas do futebol, modelos de sofás de programas televisivos de entretenimento...

No decorrer dos tempos, por força deste pensamento típico da sociedade patriarcal, a coisificação da mulher veio permeando o imaginário do homem comum e, pior de tudo, por se encontrar difusa e dispersa por todas as vias do judiciário, contaminando o direito como um todo. Não esquecer que as leis são tecidas no tear cerebrino do universo dos parlamentares instalado no Congresso, instituição de composição majoritariamente masculina e interpretadas e aplicadas em fóruns e tribunais, onde a presença proporcional da mulher não encontra justiça.

As autoras merecem aplausos por revelar, paradoxalmente, o que não estava escondido, mas à vista de todos: na pós-modernidade, mulheres executivas e gerenciadoras do lar “de todas as cores, de várias idades, de muitos amores”, [3] cotidianamente, sofrem abusos os mais perversos de ordem moral, pessoal e econômica, não se restringindo às antigas funções de servir e iniciar a vida sexual dos filhos dos senhores do capital.

No mundo natural persiste a ideia de que a mulher continua, representando o papel de figuração pejorativa delineado na estampa da família colonial brasileira. E no mundo virtual da rede mundial de computadores, o preconceito, a discriminação é ainda maior, Não importando a idade da pessoa, a figura feminina vem sofrendo violências, sobretudo, as de cunho sexual, sendo o estupro e o feminicídio a regra. A cada hora crianças e adolescentes submetem-se a abusos sexuais e mulheres adultas jovens, idosas, casadas ou não são destinatárias de agressões físicas ou morais que geram cicatrizes e sequelas psicológicas permanentes. Quiçá a impunidade ou a sensação de impunidade dos agressores seja a razão de muitos ainda clamarem a favor da criminalização de novas condutas ou da ampliação do alcance da legislação vigente. Bem a propósito, recentemente, a Lei Maria da Penha foi aplicada na adoção de medida protetiva a uma mulher vítima de stalking, expressão a ser traduzida como"perseguição persistente". [4]

Ao mundo masculino parece que a mulher permanece à venda nas vitrines dos sítios eletrônicos, mercados modernos semelhantes aos comércios de carne negra coloniais, sintetizadas todas elas no comportamento de algumas mulheres holandesas que no Distrito da Luz Vermelha oferecem os corpos impulsionadas pela ânsia do ganho financeiro. [5]

Por tudo quanto aborda, o artigo parece obra do elemento que, saído do fundo da caverna, atravessando as escarpas da ignorância do homem patriarcal, veio à superfície jogar luzes sobre o fato de que a sociedade do século XXI tem em seu DNA o ranço indelével de que as mulheres por estarem algumas estampadas às páginas de revistas masculinas e capas de portais da internet são objetos, coisas a serviço da lascívia masculina, sendo, portanto, permitido aos homens o direito de castigá-las com violência. É certo que os corpos são oferecidos ao exame do olhar masculino em busca do prazer que as formas do corpo feminino proporcionam. Todavia, a opção feminina de exposição não serve de validação à agressão. As lições de Heloneida Studart, dando conta de que as mulheres merecem ser vistas por um ângulo que as revele fora da trajetória do espaço sexual e doméstico, parecem esquecidas.

A mulher contemporânea depara-se com o avanço e a regressão misturados. Avança em conquistas materiais e regride na fruição de direitos. O fato de a mulher do século XXI ter deixado de ser aquele anjo de pureza e virgindade do século XIX e nem dê mais importância à missa dominical; que tenham se perdido na poeira dos tempos os ritos sociais de passagem, organizados para encontro de jovens casadoras nos elegantes salões de bailes, não havendo mais necessidade de sutis código dos olhares, embora muitas mantenham os olhos de ressaca e oblíquos na conquista de seus parceiros, não valida ou normaliza a violência masculina contra a mulher. [6]

As conclusões da pesquisa são preocupantes por deixar transparecer que não há outra possibilidade de superação das causas da violência de gênero, além do "fascio", do porrete às mãos do direito penal. A meu sentir, a superação não passa sequer pelo viés legal, mas pela mudança dos costumes patriarcais enraizados na sociedade brasileira. Tanto é assim que a Lei Maria da Penha, promulgada em 2006 e retocada em diversos pontos no curso de sua vigência, não trouxe a esperada redução da violência contra as mulheres. O esforço normativo é exemplo clássico de que a majoração da pena e até a criação de novos crimes autônomos vinculados aos já existentes, não oferecem a solução exigida pela sociedade.

No referenciado artigo “Direito e Literatura: Dom Casmurro versão zero do homem moderno”, publicado no sítio eletrônico Jusbrasil, já considerei que “A violência contra as mulheres no século XXI talvez se ancore em alguns motivos iguais e outros alheios às razões do tempo de Dom Casmurro. Pode ser que o empoderamento ou a exigência de igualdade de participação de ambos os gêneros tenha despertado uma reação violenta do mundo mais rígido e machista de hoje. São muitos os “pode ser”, pois na verdade, como se ainda não encontrou resposta adequada aos mistérios de Capitu, permanece nas sombras a resposta adequada à questão da violência contra as mulheres. É preciso um quadro de pesquisa amplo para localizar as verdadeiras razões de os homens ainda verem as mulheres culpadas pela violência praticada contra elas.” O artigo das autoras ao demonstrar que o pensamento do patriarcado impactou diretamente a imagem feminina contribui para localizar e permitir o correto entendimento do marco zero da violência contra as mulheres.

Por fim, reitero nesta resenha a posição assumida sobre o tema no referido artigo: “Não se quer diante da agressão a Capitu e a imensidade de abusos cometidos contra as mulheres nos dias de hoje que os Bentos modernos sejam jogados no xadrez com a chave lançada sobre a violenta maré do mar da Glória que causara a morte do amigo e comborço Escobar. Não, porque isso não é uma resposta, não é uma solução. O assunto merece antes da abordagem policial e jurídica ser posto sob as lentes da psicologia ou psiquiatria, uma vez que as emoções não controladas, derivadas de uma educação errada, do erotismo, da frustração nos relacionamentos e da falta de disciplina moral, talvez sejam algumas das causas da violência contra as mulheres. Por esse prisma, os agressores deveriam ser tratados ao invés de enviados à prisão.”

Ao contrário do que penso, as autoras chegam ao fim da pesquisa concluindo com desalento pela falta de um caminho óbvio a ser trilhado no combater aos casos de violência de gênero. A posição delas parece transferir à produção legislativa a responsabilidade pelo controle dos males que atingem as mulheres na sociedade moderna profundamente brutalizada. Neste ponto, e apenas neste ponto, discordo das articulistas, por julgar que a melhor forma de tratar o assunto é a retratada nos argumentos e fundamentos expedidos no artigo sob comento a se ter como exemplo o fragmento transcrito.

Em outra dicção, afastada a pretensão de querer ser dono da verdade e deixar por acabado o assunto, expus de forma clara que “Para romper a secularizada tradição da moral dupla a respeito de como o adultério (causa de violência contra as mulheres) é concebido e tratado entre os gêneros, desde o segundo império, talvez o primeiro passo seja a adoção de uma política que desconstrua preconceitos e incentive a introspecção de novos valores éticos, morais e humanos na sociedade em relação às mulheres, de preferência num consultório médico, nunca entre as grades das prisões”.

No filme Adoráveis Mulheres, indicado ao Oscar nas categorias de melhor atriz e melhor filme, de roteiro fixado na luta das

mulheres em busca de ascensão profissional sem ofender os bons costumes ou serem vistas como ameaça por demonstrarem inteligência sui generis, uma crítica à obra da protagonista Josephine March gera tamanha inquietude e desapontamento que por pouco não causa o rompimento de uma amizade. 

O crítico não competia nem se julgava "um sabichão pretensioso”

ou “Sumo Sacerdote do que é bom ou ruim", sendo sua pretensão

tão somente incentivar a escritora. No mesmo sentido, espero que estas desabusadas observações não gerem reações que desfaçam os laços de amizade havidos entre pessoas que orbitam com interesses comuns o mundo do direito.

[1] KELNER, Lenice. A Inconstitucionalidade das Penas Cruéis e Infame: da voz da criminologia critica à voz dos encarcerados. 1ª ed. Florianopolis: Lumen Juris, 2018

[2] STUDART, Heloneida. Mulher, objeto de cama e mesa. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1986.

[3] Pecha depreciativa constante em composição musical de MARTINHO DA VILA. Mulheres. Disponível em: https://www.letras.mus.br/martinho-da-vila/47320/. Acesso em: 04 mar 2020.

[4] ASSÉDIO E PERSEGUIÇÃO. Justiça aplica Lei Maria da Penha em caso de stalking. Revista Consultor Jurídico, 2 de março de 2020. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-mar-02/justiça-aplica-leimaria-penha-stalking. Acesso em: 04 mar. 2020.

[5] DE WALLEN. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2017. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=De_Wallen&oldid=50088284>. Acesso em: 04 mar 2020.

[6] LIMA, José Erigutemberg Meneses de, Direito e Literatura: Dom Casmurro versão zero do homem moderno. Disponível em: https://erigutemberg.jusbrasil.com.br/artigos/753037472/direitoeliteraturadom-casmurro-versao-zero..., . Acesso em: 04 mar. 2020.