narrativa para disciplina de esquizoanálise
Uma sacolinha de presentes azul piscina com flores estampadas guarda afetos dos últimos (salvo engano) quatro meses e meio. Inevitavelmente, as vivências pessoais dialogam diretamente com a disciplina, me chega de maneira muito confortável essa última narrativa para pensar em como todos esses desdobramentos se deram na sala do NUCAS, no pau pombo, no SESC, mas sobretudo dentro de cada um enquanto aluno em constante formação de si. Acredito que a vivência com a introdução à esquizoanálise foi tida de modo humanamente experimental, artístico, revoltoso, mais que tudo intimista. Por vezes as discussões me trouxeram silenciosas inquietações, carregadas no peito e simbolizadas de alguma forma na sacolinha.
“Em minhas mãos, de olhos fechados, senti uma conchinha do mar. E embora há anos não visse ou tocasse uma, eu sabia que se tratava de uma conchinha do mar. De início peguei duas, até optar, ainda sem ver, pela maior. Levei ao ouvido, sabendo que é possível ouvir ‘o mar’ em seu côncavo. Ela era/é muito aberta, não havia som, pois não havia eco.
Apesar de amar o ar livre, quando dito para pensar em um local seguro, remeti ao meu quarto. Cama, gatos, companhia ou só, é para lá que sempre volto. Eu não ouvi o som do mar (algo como vento e ondas), nem no pensamento estive em algum lugar livre, que não meu conhecido, diário, confortável quarto. Segurando uma concha aberta o suficiente para não ecoar em si mesma, pensei que sou e estou aberta também a muitas coisas, mas ainda ecoando um sentido de proteção, conforto e familiaridade”.
As conchas daquele outro dia me trouxeram essa reflexão, escrita no momento da experimentação. Dizia respeito a um receio particular de “ganhar o mundo”, ou esse cenário livre, tal como o mar que não ouvi. A segurança do quarto, dos gatos, do conforto, estavam rondando minha mente naquela semana, sobre como deixar Garanhuns, por exemplo, era uma ideia dolorosa para mim. Algumas semanas depois, já no agora, nem me reconheço nesse receio, e penso justamente que onde há medo, há desejo; hoje eu me preparo para liberdade seja ela onde for. Mas meu quarto ainda é confortável.
Em se tratando de desejo, estar nos espaços da UPE durante esse semestre foi difícil como nunca antes, pois qualquer fluxo desejante me tinha num futuro distinto, realizando outras coisas. Em partes, foi conflitante com minha experiência de entrega, mas conseguir estar nas experimentações era exatamente como poderia (ainda bem) ser. A experiência de atraso no curso durante a pandemia foi a melhor coisa que já fiz, mas logicamente não foi a mais fácil. Anseios que não existiam na época em que optei por atrasar, agora existem, já não é mais a mesma pessoa nem do início dessa disciplina, quanto mais da metade do curso até aqui. Consigo relacionar isso com o devir, permeando toda essa narrativa em algum nível.
Nesse devir, couberam alguns desvios de rota que eu honestamente não gostaria que tivessem existido. Nisso, relaciono à narrativa acerca da subjetividade do folião. Ali eu estava total e completamente subjetivada pelo amor, o livro inteirinho da bell hooks, todas as suas novas perspectivas. Não cabe na minha sacolinha de presente nenhuma simbolização do que foi aquele período, mas todo carnaval (de fato) tem seu fim.
Posso pensar nesse sentido em como ansiar pela molaridade das coisas também compõe o cenário. A cristalização de alguns aspectos para vislumbrar controle, por ilusório que seja. Assim, seja a lei, o simbólico, ou simplesmente um sentimento que se foi mas poderia ter ficado, a ambiguidade molar-molecular não é assim tão ambígua. Ambas existem, ao mesmo tempo, na mesma vida. Não se escapa da mudança, assim como não escapei de desejar que as coisas nunca tivessem mudado em dado momento.
Aqui alguns pensamentos desconexos mas que tem tudo a ver:
-Uma molécula, um grão de poeira, uma partícula, um átomo, seja o que for, pequenas partes que compõe até mesmo uma molaridade.
-Algumas vezes eu gostaria de não ter órgãos, eles pesam uma tonelada. O corpo fala, conversa, gasta o verbo, aí então minha mente é obrigada a ouvir.
-Essa disciplina foi tudo, em todo lugar, ao mesmo tempo.
-Penso na responsabilidade de uma experimentação a ser proposta. Durante "Micropolítica e revolução molecular" houve um conflito entre mim e um dos participantes do meu grupo, porque com certo tom de grosseria, foi implicado por ele que eu não estava "seguindo o planejado" (planos que na verdade eram só dele, mas mesmo que não fossem, não cabia controle numa experimentação, ainda mais de coisas simples como a hora de colocar a música, ou como seria desenhado o corpo no chão).
No mais, até mesmo o desconforto gerou algum tipo de reflexão sobre. Nesse mesmo dia, todo o desconforto do mundo em querer muito muito falar sobre o que R. e A. pontuaram acerca de uma revolução mais radical, agressiva, e outra mais amorosa, pessoal, micro. Naquele momento, concordei com ambos, só isso já dizia tudo. Uma coisa não exclui a outra. Também, o que A. chamou de agressividade ao rasgar o trabalho colaborativo, poderia ter tantos outros significantes.
Será que agressividade -quando num contexto de liberdade, de desamarrar algo, de cair fora- pode também ser amor? Até mesmo isso dá para, assim como Fernanda fez (muito bem) tantas vezes, relacionar com o filme 'Tudo em todo lugar ao mesmo tempo'. A discussão entre niilismo e existencialismo, a mãe e a filha que estão em uma guerra multiuniversal, enquanto o pai em dado momento só quer contornar as coisas com olhinhos colados em objetos, passividade e amor.
Comecei a escrever essa narrativa no início da noite de ontem, e às 21h30 estava tão cansada que deixei pela metade. Acordei de novo a meia noite, embora tentasse voltar a dormir, a necessidade de escrever me consumia. Tentei resistir a ela, mas cá estou eu às 2h44 digitando. Não se trata do prazo de entrega, nem mesmo de querer "me livrar" de uma atividade, uma disciplina, mas da relação com a escrita que vem como uma crescente revolução no meu peito. Nessas horas, mente e corpo conversam, sendo todos os órgãos passíveis de diálogo.
Haviam coisas a serem colocadas nessa narrativa, um fluxo de pensamentos que poderia ser direcionado para outras áreas da minha vida, mas acho que queria dizer que apesar das faltas -emocionais e institucionais - para com a disciplina, eu tive um aproveitamento pessoal muito grande, pois o efeito e potência de expressão que a esquizoanálise permite é bonito, necessário demais.
O que fica principalmente é a forma como foram ramificadas as afetações. Esse texto não é linear, assim como meus pensamentos nas discussões não foram, assim como a vida não é. Não é possível centralizar ou hierarquizar as experiências, mas construir algo a partir desse cenário, de maneira múltipla e descentralizada, tal como o percurso desses últimos (salve engano) quatro meses e meio. Como o rizoma, nada aqui teve uma única direção.