Estigmas da Sociedade
Aquela infernal dor de cabeça não havia passado e em seu íntimo sabia ter tomado uma dose a mais do vinho quinta safra que recebera de presente em seu trigésimo aniversário . Mais um dia amanhecia neutro naquela rotina insípida e insossa. Jair. Era esse o nome de quem se sentia o capitão da saúde, a caminho do Pronto Socorro do Hospital Santa Tereza , de onde saíra há cinco horas. Jair dirigia-se refletindo sobre sua vida e não podia deixar de fazer analogia entre sua rotina no P. S. e a divina comédia humana chamada " Titanic " que fora assistir, no cinema, há uns anos, onde o capitão do navio teve de optar entre quem iria subir no barco salva-vidas e quem iria , após o navio batizado por nome Titanic, ter beijado um imenso
" iceberg ", afundar com o imponente e endeusado navio.
Mal estacionou seu carro e , esbaforidamente, sua assistente veio lhe informar que haviam dez pessoas à sua espera no corredor da morte do Pronto Socorro. Apagou pela metade seu cigarro e adentrou , após se benzer e solicitar à Deus que lhe poupasse da verduga decisão que temia ter de tomar, caso encontrasse várias pessoas em terminal estado de saúde. Ante sua restrita condição de médico, qual capital do eminente navio "Titanic", teria de optar entre quem iria viver e quem iria morrer. Recebera a lista dos flagelados da saúde que ali se encontravam: Madalena ( meretriz), Paulo ( sacerdote), Bruno ( oito anos ) , Carlos ( Pai de Bruno ) , Raimundo ( operário da construção civil), Luiz ( professor ) , Alberto ( cientista) , Antonio Carlos ( político) , Denis ( paraplégico) , Benedita ( velhinha).
Sentiu o chão lhe faltar e pensou : " Deus está me testando outra vez ". Sei que , possivelmente, serei injusto, mas, humanamente, só poderei atender a três ou quatro pessoas , concomitantemente. Sou médico e não Deus. Inevitavelmente algumas pessoas não serão atendidas a tempo mas temos de fazer o que está a nosso alcance. Este é o retrato, a fotografia da saúde em nosso país.
O Paraplégico, a Prostituta, o Operário, da construção civil e a Velhinha não serão atendidos a tempo e , nesse primeiro momento, terão de aguardar. Um filme então, sobreveio-lhe à mente, aliás, Titanic assomou-lhe de chofre. Sentiu-se qual capitão do grande e imponente navio e, pôs no barco salva-vidas do P. S., as pessoas, por ele, preconceituosamente, escolhidas . Jurava ser esta sua última empreitada no Pronto Socorro do Hospital Santa Tereza e mudaria , depois, de ambiente comercial.
Deveria ter sido jogador de futebol como insistira seu pai ou torneiro mecânico, como seu primo Luiz Inácio. Mas seguiu seu instinto e tornou-se salvador de vidas. Teve de ser preconceituoso ao decidir quem iria morrer e quem iria viver nesse fatídico último dia no P. S.. Preconceito. Foi esse o critério utilizado pelo Doutor Jair ao deixar sem atendimento as pessoas não escolhidas . E como as mazelas não esperam, o jorrar de sangue tingia de vermelho escarlate, o alvo piso, que sustentava em pé, ainda, os estigmatizados da sociedade.