O POETA BIOGRAFADO

Ser homem de outro século traz sérias consequências. É enorme a sensação de invisibilidade. Sente-se que algo ficou trancado lá dentro, sendo enorme o receio de expor-se cá fora. Sinto-me enfermo e vulnerável, mas o que falta para a cura não sei exatamente o que é. Sequer sei se minha mentalidade confusa é coisa do passado. Na verdade, trago à modernidade sabores extemporâneos. De moderno expresso a ansiedade e o egocentrismo. Nada mais. Poeta, não sou, falta-me a demência atávica que envolve a casta como a renda purpurina do reflexo do crepúsculo isolando as trevas da luz. Alinhavo palavras. Se escrevo, tento encontrar a festa que existe em algum lugar, e para a qual não fui convidado e nem consigo localizar.

A originalidade foge-me entre tortuosas linhas rascunhadas. Sempre penso que meus textos deixam a desejar em conteúdo e em forma. A poesia e a prosa dos predecessores e dos iguais têm maior profundidade. É enlouquecedor suportar o mundo com o escudo da poesia quando pouco se valoriza o verso, ferramenta que utilizo para a reflexão sobre os significados do amor e da própria vida Se me desnudo em fatos autobiográficos é por saber que cada leitor fará uma interpretação pessoal dos versos com os quais me defino. É melhor assim. Se me conhecessem como realmente sou, decerto sequer se atreveriam a folhear essas páginas. Adiante, descubram-me em alguns

PEDAÇOS:

I

Fez todo o feito,

sem propósito nenhum.

Tinha medo de partir

e despediu-se da casa do pai

apressado para pegar

o primeiro comboio.

Na segunda classe,

encheu o corpo de cansaço,

e de pó a alma vazia.

Nunca ambicionou nada,

estando certo sem balda

de que nada encontraria.

Sair e morrer mais ou ficar

e morrer menos era tão indiferente...

Diante dele, em meio a estranhos,

os filhos surgiram a cobrar

a aguardada decisão

negada às próprias mães,

de amor tão raro esquecidas.

Os netos vingam-se dos fracassos,

desgostando os pais que lhes deram.

Perdera a própria consciência

do existir.

Deixando de ser inteiro,

espalhou-se aos pedaços

pelos bancos gastos das estações,

porque sem propósito nenhum,

fez todo o feito.

II

Sou Muito bem assim

mas às vezes até, sei lá,

nem mesmo sei quem sou...

Se busco entender,

a que estou a fim,

talvez atá descubra:

eu nada seu de mim...

III

- Vim das paragens do vento

no troar de atabaques de uma raça

sentada à lenda de uma pedra.

- Vim de um bambúrrio, de um atoleiro,

com pensamentos de frade

e desejos eremíticos.

- Vim de um bueiro

nas rodas do carro de lata

que levou à igreja meus pais

e ao cemitério meus avós.

E...

teceram minhas fraldas

com o mesmo algodão

que me servirão por mortalha.

Sentaram meus quadris

no tamborete roceiro

feito da mesma madeira

que selará meu caixão.

Ensinaram meus lábios e dedos

a conversarem com contas-de-vidro

com a mesma veemência

com que me ensinaram a esquecê-las.

Sou...

Filho de terra agreste

- inata civilização.

O frade lá ainda fica,

o forte aqui ainda mora.

Meus avós passaram,

meus pais tomam a fila...

E a terra não tem pressa

em me acolher...

IV

Sou o escritor de rascunhos

Domando as frases feitas,

Que juntas, não rarefeitas

formem folheto de punhos.

Meu leitor seja Cervantes

Deleite-lhe o conteúdo

Leitor sensível e mudo

Veja-o bom em instantes.

E Millor, vem de lascar,

irreverente, e diz

será difícil o infeliz

revê-lo após o largar.

V

Sou da terra

onde a água teima

e nunca vem molhar.

Sou do rio

onde a vertente

queima em vez de desaguar.

Sou o grito seco, cabra,

que ninguém quer escutar.

Quem sou eu?

Quem sou eu?

Sou servo do sol pino,

terra seca, vento, mar,

pele preta, dente ruim,

com esperança de matar

a fome murchando o braço

que da terra quer cuidar.

Quem sou eu?

Quem sou eu?

Sou filho da natureza

aquém do próprio chão.

Pescador de mares secos

num lugar de solidão,

suor quente, mãos cortadas,

terra árida, pouco pão.

Quem sou eu?

Quem sou eu?