Claviculário

Semanas atrás,logo que mudei pra este novo endereço,a chave emperrou na fechadura da porta de entrada.

Por mais esforço que eu fizesse,a danada não girava nem meio milímetro lá dentro.Como resultado,machuquei dedos,perdi energias,ganhei a frustração do empenho mal-sucedido e ...fiquei na rua.

O chaveiro vinte e quatro horas chegou quarenta minutos depois que o meu traseiro amassou no degrau da escadaria.

Circunstância imprevista.

Enquanto esperava pelo socorro,curiosa e indecentemente,senti minhas 'portas internas' destravarem uma a uma:chaves giravam sem esforço aqui por dentro,deixando-me à mostra milhares de janelas...

Muito estranho,impróprio e descabido.Mais ou menos como seria despir-se no meio da rua.

No meio desse descontrole imagético-emocional,percebi que algumas das minhas portas eram mais estreitas que as outras.Notei também que diferenciavam-se em altura.Abriam-se milagrosa e facilmente cá dentro,enquanto o meu corpo doía na espera ali fora.

Fui passando em frente à cada uma das portas,portinhas e portões que tive tempo de visitar e ,ao olhar lá dentro,lembro de ter visto muitas janelas escancaradas.O vento que entrava por elas trazia um cheiro de primaveras antigas.

Eu sei que se o chaveiro demorasse mais um pouco,a minha bunda ia roxear;em contrapartida,eu teria tido tempo de apoiar-me ao balaústre de uma delas,ao menos, pra espiar.

Agora, depois daquele dia de chaves entortadas e portas destravadas,fico pensando :o que eu teria visto lá fora?

Lá fora?

Provavelmente,aquela paisagem fosse bem diversa desta que vejo pelas janelas de dentro do meu apartamento.Aqui,o cheiro do vento traz gases fétidos e a retina mostra-me concreto armado demais e gente desarmada de menos...

Eu acho que um dia desses ainda volto lá.

Nem vou precisar arrombar portas,ou chamar chaveiros pra chegar a elas.

Quando eu conseguir saber o que há do outro lado daquelas janelas,que trazem ventos de outrora,eu juro que me conto!