Eu sou
um porto semovente
o chocalho da serpente
a ponte que sumiu
uma nuvem que subiu
um disco torto e antigo
mão estendida do amigo
uma porta entreaberta
a pantorrilha coberta
um certo drama francês
um bom perfume burguês
um bolero bem rasgado
o filme longo e chorado
o barco que sempre atrasa
a senhora da desgraça
a trama de um tricot
um cálice de Merlot
o gozo de uma coceira
a face de uma soleira
o despertar de um coitado
um ponto-cruz de bordado
uma penumbra, um carinho
aquela saia de linho
um jeito de maresia
um olhar de fantasia
a semente que desgrana
um poema de Quintana
um romance de Queirós
o vôo de um albatroz
o lusco-fusco dos bares
o brilho de uns olhares
as pernas daquela miss
o sorriso de uma atriz
o pulsar de um encanto
a transparência do manto
a dama que desce a escada
uma donzela lascada
de tanto sonho que sonha
a baba quente na fronha
a menina da pintura
um arsenal de bravura
uma tia, uma irmã
a pérola de um afã
uma mãe e uma filha
uma palmeira e uma ilha
a tremedeira do choque
uma dica e um bom mote
um rosnar felino à noite
o ruído de um açoite
na campina congelada
caminho longo de estrada
que leva a qualquer lugar
por onde brilhe o luar