Cicatriz, espelho, xilogravura

Olho-me ao espelho, e é duro ter que reconhecer-me. Uma ferida cruza meu rosto, e é duro reconhecer que ela vai deixar uma marca, uma cicatriz para funcionar de ponte entre os dois extremos da face. Mas é assim mesmo que tudo deve funcionar; a gente passa pela vida e marca a humanidade; a vida passa pela gente e marca nossa cara. Passo os dedos pela minha ferida, escorrega meu curativo mal feito que deixa transparecer parte da crosta mole que ainda se forma. Não posso sorrir, por que dói. Também não posso chorar, por que assim dói duas vezes. Daí olho-me no espelho e percebo-me como uma xilogravura, com todas aquelas marcas fortes na madeira, mas não posso pensar assim, por que dói e dói no ego. Dói por que eu todo sou uma ferida diante do espelho, e as feridas enquanto feridas só fazem doer. Esse corte estúpido que cruza meu rosto, que toma todo meu espelho, que é inútil, pois eu tenho um curativo, que é inútil também, por que a ferida continua lá e ainda dói de qualquer maneira. Por que pela lei da inércia eu não sei ficar parado, e não ficar parado dói.