El sótano - Tradução literária

Prólogo

Tradução do conto El sótano, de Silvina Ocampo (1903 – 1993), escritora, contista e poeta argentina. Irmã da escritora e fundadora da revista Sur, Vitoria Ocampo, e esposa do grande escritor argentino Adolfo Bioy Casares. Autora deslumbrante pela qualidade literária dos seus contos, entrou para a história da literatura argentina do século XX, devido à crueldade desconcertante que soube imprimir em alguns protagonistas dos seus relatos.

Dona de uma linguagem culta que serve de suporte para suas invenções retorcidas, Ocampo disfarça sua escrita com a inocência de uma criança para nomear, seja com surpresa ou indiferença, a ruptura no cotidiano que instala a maioria de suas histórias no território do fantástico.

Sua primeira publicação se deu em 1937, com o livro de contos Viaje olvidado; e a última com o livro Las repeticiones, publicado postumamente em 2006. Entretanto, sua obra mais destacada pela crítica foi La furia, contendo 34 contos, publicado em 1959.

O PORÃO

Este porão que no inverno é excessivamente frio, no verão é um Éden. Na porta de entrada, no andar de cima, algumas pessoas se debruçam para tomar ar fresco durante os dias mais cruéis de janeiro e sujam o chão. Nenhuma janela deixa passar a luz, nem o horrível calor do dia.

Tenho um espelho grande e um sofá, ou cama turca, que me presenteou um cliente milionário, e quatro colchas que fui adquirindo aos poucos, de outros canalhas. Em baldes, que me empresta o porteiro da casa vizinha, trago pelas manhãs água para lavar o rosto e as mãos. Sou asseada. Tenho um cabide, para pendurar os meus vestidos atrás de um jogo de cortinas, e uma prateleira para o castiçal. Não há luz elétrica, nem água. Meu criado-mudo é uma cadeira, e minha cadeira uma almofada de veludo.

Um dos meus clientes, o mais jovenzinho, trouxe da casa da sua avó, retalhos de cortinas antigas, com as quais decoro as paredes, com desenhos que recorto das revistas. A senhora de cima, me dá o almoço; com o que guardo em meus bolsos e algumas balas, tomo meu café da manhã.

Ter que conviver com ratos, me pareceu, em um primeiro momento, o único defeito deste porão, onde não pago aluguel. Agora noto que estes animais não são tão terríveis: são discretos. Em resumo, são preferíveis às moscas, que abundam tanto as casas mais luxuosas de Buenos Aires, onde me davam restos de comidas, quando eu tinha onze anos. Enquanto estão os clientes, não aparecem: reconhecem a diferença que existe entre um silêncio e outro; surgem apenas quando estou sozinha, em meio a qualquer tumulto; passam correndo, se detêm um instante e me olham de soslaio, como se adivinhassem o que penso deles.

Às vezes, comem um pedaço de queijo ou de pão, que caiu ao chão. Não têm medo de mim, nem eu deles. O ruim é que não posso armazenar suprimentos, pois eles os comem, antes mesmo que eu os prove. Há pessoas mal intencionadas que se alegram desta condição, e que me alcunham de “Fermina dos ratos”. Eu não quero satisfazê-las, e não lhes pedirei emprestado as armadilhas para exterminar os ratos. Vivo com eles. Os reconheço e os batizei com nomes de atores cinematográficos. Um, o mais velho, se chama Carlitos Chaplin, outro Gregory Peck, outro Marlon Brando, outro Duilio Marzio; outro que é brincalhão. Daniel Gélin, outro Yul Brynner, e uma femeazinha, Gina Lollobrigida, e outra Sophia Loren.

É estranho como esses animaizinhos se apoderaram do porão, onde talvez viveram antes de mim. Inclusive as manchas de umidade assumiram a forma de ratos; todas são escuras e um pouco alongadas, com duas orelhinhas e uma cauda longa e pontiaguda. Quando ninguém me vê, guardo comida para eles, em um dos pratinhos que o senhor da casa da frente me deu. Não quero que me abandonem, e se o vizinho vem me visitar, e quer exterminá-los com armadilhas ou com um gato, farei um escândalo do qual se arrependerá sua vida inteira.

A demolição desta casa já foi avisada, mas eu não saio daqui até morrer. Acima, preparam baús e cestas, e empacotam sem parar. Em frente à porta da rua, há caminhões de mudança, mas eu passo ao lado deles, como se não os notasse. Nunca pedi nem cinco centavos a esses senhores. Espionam-me todo o dia e pensam que estou com clientes, pois falo comigo mesma, para irritá-los; porque têm raiva de mim, trancaram-me com chave; porque tenho raiva deles, não peço que me abram a porta.

Há dois dias sucedem coisas muito estranhas com os ratos: um me trouxe um anel, outro uma pulseira, e outro, o mais astuto, um colar. A princípio não podia acreditar, e ninguém acreditará em mim. Sou feliz. O que importa que seja um sonho! Tenho sede: bebo meu suor. Tenho fome: mordo meus dedos e meu cabelo. A polícia não virá me buscar. Não me exigirão um certificado de saúde, nem de boa conduta. O teto está desmoronando, caem pequenas folhas: talvez é a demolição que começa. Ouço gritos e nenhum diz o meu nome. Os ratos têm medo. Pobrezinhos! Não sabem, não compreendem o que é o mundo. Não conhecem a felicidade da vingança. Olho-me em um pequeno espelho: desde que aprendi a olhar-me nos espelhos, nunca me vi tão linda.

© Silvina Ocampo: El sótano. Publicado em seu livro La Furia, 1959. Tradução: Liege Karyj

Para acessar o conto no idioma original ou ler mais contos traduzidos visitem o meu blog pessoal:

https://retalhosdetinta.wordpress.com/

Espero vocês!!

Liege Karyj
Enviado por Liege Karyj em 01/05/2024
Reeditado em 01/05/2024
Código do texto: T8054041
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