Tv. dos Mártires (Cap. 1)

O crepúsculo aproximava-se sem pressa, hora pairando sobre a montanha, hora entre duas colunas rochosas encarceradas pelo pictórico cenário bucólico que se exprimia no horizonte. Em outra hora, o céu e as nuvens eram cortados com clarões solenes e calmos por um espetáculo de albatroz, que dançavam entre clarões róseos e o próprio crepúsculo que naquele momento flamejava e cintilava como uma noite estrelada. Aurora, que acabara de completar seus 20 anos, tinha seus olhos completamente vidrados em direção ao majestoso espetáculo de cores ternas que sucumbia, e estreitava-se para dar lugar à escuridão da noite que surgia.

Chegada a noite, o ambiente tomou as cores de um sabá sinistro, repleto de gritos que destoam por todos os lugares, e pairavam sobre as cabeças de uma multidão desordenada e, acima de tudo, desorientada. Embora a Av. da Integridade estivesse cheia de pernas, a grande maioria escondiam-se entre as saias das mães que se vendiam na Tv. dos Mártires, com o intuito de encontrar um consolo para seus desejos suprimidos ou um colo quente para acalentar a frieza de suas almas errantes. Porém, enquanto caminhava pela Tv. da Integridade, por um lapso de segundos, Aurora desviou o olhar dos clarões - que já nem notavam-se mais à olho nú - para a cena que acabara de acontecer na Tv. dos Mártires, quando uma mulher era brutalmente espancada, provavelmente, por uma esposa frustrada, confinada à um casamento de aparências e sem afeto algum de ambos as partes, mas precisava manter-se na no topo da hierarquia social e, quem sabe, tirar algum proveito do status que lhe obrigaram à litigar.

Enquanto Aurora testemunhava o conflito que, inicialmente, pareceu penhorar um desfecho justo a ambos, olhou com um certo pesar - já entristecendo-se, quando notou a pobre mulher desprovida de feições ou aspectos humanos, pois, já descobria seu rosto sem face, sem identidade, sem reconhecimento. Inclusive, o vigor e a vivacidade que a princípio mantinha-a , aparentemente, com postura firme e ereta - como se mostrasse disposição para encarar um conflito selvagem e feroz, dissipou-se de seu corpo esguio e despojado, que agora encontrava-se moribundo na Tv. dos Mártires, provavelmente, ávido de justiça naquele momento. Uma multidão avarenta rodeava o local sem brechas deixar, preocupavam-se caso algum outro vagabundo quisesse as autoridades levar, sendo assim, não houve um lapso de benevolência pelos infortúnios da pobre moribunda abraçada a calçada do pátio, senão uma multidão sedenta para fundamentar a barbárie no jornal da cidade.

Enquanto isso, do outro lado do pátio, Aurora fixava seus olhos chorosos na pobre mulher sem questionar o motivo da empatia e da compaixão na qual sentia com seus infortúnios, pois, sabia que eram irmãs de ficção. Quando Aurora voltou a fixar o cadáver da mulher, percebeu que ela já não pertencia ao seu mundo, e seu último suspiro anunciou a fuga de uma cortina fumacenta e sem forma, que se formava ao redor do corpo desfalecido da mulher no gélido concreto. Com a morte precoce e brutal da pobre mulher, Aurora arregalou os olhos negros e depressivos; um tanto fundos e invernais - com sutilidades primaveris até, para encarar fixamente um par de olhos cor de púrpura e aspecto aterrador que a espreitava calmamente, do outro lado da avenida. Sem demora, os púrpuros olhos aterradores metamorfosearam-se em uma criatura grotesca; seu aspecto medonho causava repulsa em qualquer um dos olhares que o espiava, e abruptamente emergiu sobre a multidão curiosa e o cadáver de aspecto apodrecido; um tanto cinzento e lamacento, da pobre mulher na imunda calçada do pátio.

Continua...