O SOM MAVIOSO

Juli Luna parecia um personagem lapidado para as redes sociais, na verdade a pessoa que o mundo virtual conhecia, esfuziante, alegre, sempre antenada à moda, sequer chegava perto da realidade.

A verdade de Juli Luna era introspectiva, apagada e com uma solidão latente, nenhuma foto era totalmente real, todas eram editadas até mesmo o sorriso largo e simpático.

Os seus dias eram ocupados em manter seu personagem vivo e reluzente, com muitos seguidores para o seu 'avatar', dentro dela o vazio era dolorido, às vezes falava sozinha e se respondia com sorrisos estudados. À noite os travesseiros eram abraços e as luzes azuis do abajour eram como olhos carinhosos que velavam seu sono inquieto, triste situação.

Certa tarde em plena atividade na internet, Juli Luna ouve uma música insistente, como só tivesse três notas graves e altíssimas, mas, por mais estranho que pudesse parecer, era reconfortante literalmente, maviosa.  Ela à princípio se incomodou com a repetição dos acordes, depois se acostumou, não tinha ideia de onde o som vinha, só que de alguma maneira ele lhe dava energia e a fazia dançar (coisa que ela nunca mais fizera). Quando foi deitar o som que estivera presente durante o dia inteiro cessou, Juli Luna sentiu falta e percebeu que ficará muito menos tempo em frente ao computador e ao deitar seu sono foi restaurador. Acordou bem mais tarde do que o normal, tomou banho cantando uma música beeem antiga e foi debaixo do chuveiro, que se olhou no espelho e se perguntou
- Quem é você?    E sorriu

Assim que acabou de tomar café o som de três notas recomeçou como no dia anterior. Se vestiu de forma confortável e com cores alegres, colocou um boné amarelo e foi dar uma volta, respirar ar fresco e olhar sua rua, a praça, pessoas, o céu azul...estranhou estar fazendo isso e o som que havia parado, mas, seguiu seus passos. Algum tempo depois sentiu calor e um desejo de tomar um sorvete. Procurou uma padaria, comprou um picolé de maracujá e continuou caminhando saboreando o doce refrescante. Observou um prédio novo em construção com belas varandas, viu mais rugas no rosto do antigo jornaleiro, viu uma menina ruiva de uns dez anos aproximadamente e olhando para sua mãe, uma memória esquecida lhe trouxe a lembrança que estudara com aquela moça...só então se deu conta que há pouco mais de dez anos apagara seu mundo real, Juli Luna engoliu um soluço e enxugou uma lágrima morna
- Porquê?    Se perguntou, mas, desta vez não obteve respostas. Respirou fundo e voltou para casa. Logo que abriu a porta o som recomeçou, Juli Luna tamborilou os dedos sobre a mesa, acompanhando o ritmo.
- É colega...agora somos só nós dois 

Ligou o computador e resolveu partilhar com os seguidores a sua manhã inusitada, alguns comentários foram relevantes e motivadores,  outros partilharam o que fizeram pela manhã e ela sentiu tédio pois relatavam o que haviam feito no computador, por algum motivo sentiu artificialidade e saiu da rede social...seu lar seleto há mais de dez anos. O som mavioso era cada vez mais alto. Deu fome e resolveu pegar o celular e procurar uma receita de frango...queria uma coisa diferente, inusitadamente estava com apetite. Achou o que queria, foi acompanhando o vídeo do preparo, cantava outra música antiga e o som companheiro de três notas sumiu.  Comeu com gosto, tomou uma taça de um vinho branco suave e sentiu falta de uma sobremesa. Ligou para uma doceria próxima e pediu duas fatias de bolo de brigadeiro com muito chantilly. Enquanto esperava preparou um café e aguardou a entrega do pedido lavando a louça.
- Pensava...onde habitava essa moça leve e que gostava tanto da vida?   Como tempo passou tão falso e rápido...

Passou à tarde lendo um livro de crônicas, riu de algumas, outras a revoltaram e a maioria eram motivadores e atuais. O mundo mudara e ela nem se dera conta...
- Será que ainda havia tempo para ela encontrar um amor, fazer novos amigos talvez quem sabe, resgatar algum do passado...os passeios eram tão alegres..

Precisava encontrar sua antiga agenda de telefones, será que alguns se lembrariam dela? Não custava tentar, mas, sem expectativas afinal já se passavam mais de dez anos.

Juli Luna percebeu que já havia algum tempo que o som de poucos acordes silenciara...
Falou em voz alta
- Cadê você companheiro? Me abandonou...mas, ele não soou outra vez. 

Curtiu a tarde arrumando a casa, mudando algumas coisas de lugar, jogou outras fora e separou alguns acessórios e roupas para doação. Tomou um banho de banheira demorado, colocou uma camisolinha leve, fez um chá de maçã com canela e juntou uns biscoitinhos, escovou os dentes, escolheu um filme romântico e o enredo a fez suspirar gostoso, desligou a TV e dormiu o sono dos justos.

Acordou com vontade de escrever, sua agente já devia até desistido dela, não publicava nada há pelo menos cinco anos, era um sucesso eremita, sem mídia, sem viagens de divulgação ou tarde de autógrafos, mas, seus vencimentos eram depositados mensalmente graças aos best sellers que emplacara no passado e foram traduzidos para diversos idiomas, era uma ótima escritora de suspense...virara uma ostra no meio do caminho...nem se lembrava mais porque...só focara no 'avatar' virtual e apagou sua essência verdadeira. Ligou para a sua agente e ela quase surtou de felicidade...já vislumbrando um novo sucesso, combinaram um almoço para conversar e o papo foi proveitoso, fraterno e profissional. O som mavioso e altíssimo foi soar em outras paragens, mas, lhe fizera muito bem, novos ares...um recomeço.

Juli Luna agradeceu ao som misterioso pela mudança em sua vida, esperava sinceramente que ele soasse alto em outra criatura, ele fora um bálsamo em sua vida.
Cristina Gaspar
Enviado por Cristina Gaspar em 03/05/2021
Código do texto: T7247572
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