DO LADO DE LÁ UMA CANÇÃO DE AMOR
Assim que parei em frente ao portão de entrada, eu a vi sorrindo e se esquivando sorrateiramente em meio aos pinheiros de tuia que na sua imensidão era a imponência do jardim. O portão abriu automaticamente e me dirigi pela alameda central coberta de hortênsias brancas e lilases. Antes mesmo de adentrar à mansão, eu já estava encantado por tudo que meus olhos podiam alcançar, nem mais lembrava de como era o lugar em que nasci e vivi os primeiros anos da minha vida.
No alto da escada a governanta me esperava com cara de poucos amigos. Vi que precisava ser mais polido, enquanto estivesse hospedado no casarão.
Ganhei os degraus de dois em dois, com as malas estufadas de roupas e acessórios. Ela me recebeu com um cumprimento de poucos dentes que me deixou sem graça. Segui-a em silêncio. Encaminhou-me pelo comprido corredor onde tinha os aposentos de dormir, um ao lado do outro e todas as portas, uma em frente à outra. Observei que em cada porta estavam as mesmas tabuletas com nomes esquisitos, que só ao meu pai fez sentido e que não sabia o motivo do meu irmão tê-las deixado continuar ali.. No fim desse passador era o quarto. O mesmo que eu dormia quando criança, mas, não me fora dado de propósito para nele dormir outra vez.
Ela foi entrando e abrindo as cortinas e as janelas. Agora, a cama era de casal, estava impecavelmente arrumada com lençóis brancos e edredons floridos. Sobre o leito haviam duas toalhas brancas dobradas em forma de pássaro. Uma maior, outra menor. Falou para que guardasse as roupas e as malas nos armários e que estava à disposição na cozinha, apontando uma campainha que havia sobre o criado-mudo. Disse que eu ficasse à vontade e se retirou.
Depois de desfazer as malas, conforme ela tinha ordenado, corri para a janela e fiquei espiando o jardim. Reparei nos pinheiros enfileirados e ao redor deles vários tipos de flores que eu não conhecia. Avistei ao fundo, uma baía sem grandes proporções que ficava na curva mais acentuada do São Lourenço. Era como se o rio se arrependesse de entrar ali e retomasse ao seu curso normal, contornando a pedra do Arco-íris pelo outro lado. Assim era a pequena baía de água doce. Sua orla coberta de vegetação de flores miúdas e coloridas que os cisnes comiam avidamente, enquanto tagarelavam uns com os outros, flutuando na água com a elegância que lhes é peculiar.
No banho, peguei-me cantarolando enquanto me ensaboava.
Pus o roupão e voltei à janela. Outra vez, pude ver a mesma pessoa sorrindo e se escondendo entre os arbustos do jardim. Fiquei intrigado. Parecia não me ser desconhecida.
- Quem seria ela?
- Parecia ter menos idade que eu.
O sol já se punha no horizonte e as nuvens avermelhadas escondiam parte da montanha atrás de si. O vento balançava os pinheiros com suavidade. Os cisnes começaram a se recolher em fila indiana, enquanto se coçavam e batiam as asas para se enxugar.
Nesse dia, era lua cheia e ela prontamente já se fazia inteira e linda acima do sopé da montanha. Meu encantamento voou para além dos meus olhos lacrimejados pela viagem que fazia no tempo.
Lá fora o silêncio era o dono da hora.
Senti fome e desci, mesmo que não tivesse sido convidado. A escada que dava para a sala de jantar tinha dez degraus, contei-os, como fazia quando era criança, assim que aprendi os numerais até dez. Queria também, escorregar através do corrimão de madeira de jacarandá, como outrora fazia, mas, me contive. Um suspiro de saudade saiu do meu peito deixando-o dolorido. Desci os degraus galopando no pensamento, refazendo um tempo de felicidade e de puerilidade, como quando ouvia mamãe me chamar:
- Bernardo, venha jantar, meu filho! Larga um pouco esses livros!
Encontrei a governanta pondo a mesa. Percebi que havia somente pratos e talheres para duas pessoas. Decerto, ela e eu jantaremos juntos, pensei.
Esperei que ela me convidasse sentado no sofá de dois lugares que havia embaixo da janela.
A luminária sobre a mesa era a mesma de quarenta anos atrás. Encardida e fora de moda.
Sentamos à mesa e o mordomo trouxe um vinho tinto e encorpado que sorvi de um só gole, porquanto a velha me punha os olhos arregalados. Achei que ela fosse falar da minha falta de fineza, mas, não o fez. Encheu outra vez minha taça, estendendo-a, para brindarmos o momento.
Foi um tim-tim sem palavras, mas, cheio de significado, acho que tanto para mim, quanto para ela.
Fazia exatamente quarenta anos que sai dali.
Nesse tempo, ela era uma mocinha magra e sem graça, mas tornou-se uma mulher bastante arredondada
Depois do jantar desci ao jardim. A lua cheia me esperava.
Sentei num dos bancos admirado com a beleza que aquelas terras haviam se tornado. Talvez pela minha inocência não conseguisse ter a admiração que agora podia perceber. Nada melhor que a experiência de anos numa cidade grande para dar valor a paz, ao silêncio e à natureza. A lua refletida nas águas da baía dava-me a sensação de estar ali pela primeira vez.
A água era azul e transparente.
Permaneci das minhas contemplações, falando comigo mesmo.
Um barulho nos pinheiros me fez acordar do vislumbre. Era a mulher que se esquivava por ali, desde que cheguei. Olhei rapidamente, mas, ela saiu gargalhando, enquanto se escondia em meio às folhagens. Fui atrás dela, achando que fosse real.
Caminhando apressado tentava falar com ela, mas, ela andava sempre mais depressa. Quando estava prestes a alcançá-la, ela desaparecia da minha vista, sempre numa gargalhada curta, indo aparecer no vão da outra fileira de arbustos, e, quando eu passava também, ela ia para a outra mais longe. Ficamos por longo tempo brincando nesse pega-pega. Cansado, entrei em casa.
Todos já haviam ido dormir.
Subi as escadas e no quarto, vi que estava com a testa e as exilas molhadas de suor.
Tomei outro banho, pus o pijama e fui sentar na varanda da frente.
Mal havia sentado avistei-a, à orla da baia, cantando uma bela e emotiva canção. Sua voz era linda. Fiquei comovido, porque achava que em algum tempo distante ela fora importante para mim. De repente, ela sumiu de novo.
Nessa noite, o sono só chegou de madrugada. Fiquei ansioso por causa da mulher de túnica branca que vi no jardim.
Levantei cedo e fui à baia. Os cisnes já estavam por lá, na sua dança mais característica, fazendo o que mais gostavam.
Fiquei por ali, perdido em pensamentos.
A cozinheira veio me chamar para o café da manhã.
Estávamos degustando o café quando um carro buzinou na entrada do jardim. Era meu irmão Cristóvão que chegava da capital. A fazenda agora era dele.
Entrou pela porta da cozinha e mal falou comigo. Acho que teve medo de eu contestar os bens que eram da família e que ele cuidou, só para si.
Depois de alguns minutos, tomou seu lugar à cabeceira da mesa.
Encheu a xícara de café e bebeu metade num só gole, dizendo que os negócios tomaram-lhe tanto tempo, que mal pôde se alimentar. Pediu que lhe trouxesse ovos mexidos com bacon. Enquanto comia, disse-me que depois do café ia me mostrar o alambique e o estoque de bebida pronto para ser exportado no próximo mês.
Concordei, mas, não pronunciei nenhuma palavra, esperando que ele continuasse, mas, ele também silenciou.
Quando saímos para fora, reparei que do outro lado da estrada o canavial sumia infinitamente até encontrar-se com o horizonte. Vi também que o parreiral do outro lado da baía era enorme e se escondia atrás da montanha. Eram muitos acres de terra fértil, próprias para o cultivo e meu irmão soube como aproveitá-las.
Cristóvão ia falando sem parar sobre os anos que estive fora e em quanto ele havia trabalhado depois que mamãe faleceu e papai resolveu partir para fora do país, onde moravam nossos avós. Em silêncio, eu ouvia, e, de certa forma, sabia que ele tinha razão.
Do outro lado da baia, estávamos nós caminhando lado a lado, enquanto, degustávamos algumas uvas retiradas diretamente do pé e eu de ouvidos apurados escutando tudo o que ele dizia.
Quando fui morar na cidade grande, o parreiral não existia. Contou meu irmão, que foi plantado por ele, logo depois que meu pai foi embora. Estava carregadíssimo, os cachos de uvas eram enormes e bastante suculentos, tão logo, deveriam ser colhidos e transformados em vinho, conforme ia me dizendo.
Nessa tarde, conversamos longamente e ele foi abrindo a guarda. Falou das muitas dificuldades enfrentadas por nossos pais, que eu como filho primogênito não assisti.
Entramos na cozinha, onde um jantar fumegante nos aguardava sobre a mesa.
Enquanto nos alimentávamos ele ia finalizando a história da nossa família.
Após a partida de mamãe, papai desposou a irmã da governanta que era bem novinha, mais nova que eu, bem mais nova.
A moça depois de se casar com papai, não levou muito tempo, fugiu com um dos nossos rapazes que trabalhava na manutenção do engenho. Papai decepcionado com a situação resolveu partir, deixando nas mãos de Cristóvão toda a responsabilidade e cuidado com a administração da fazenda.
Custódio tinha apenas dezessete anos.
Meu pai partiu e nunca mais deu notícia.
Devo convir que tanto eu, quanto Cristóvão, não nos incomodamos muito com esses dramas. Seguimos nossa vida. Cada um na sua individualidade.
Depois do jantar ele subiu aos seus aposentos e eu fui sentar-me à beira da baía. Estava intrigado com a mulher que volta e meia se escondia de mim no meio do jardim.
Segundo dia da lua cheia, precisa e pontual, lentamente caminhava sobre o pico da montanha. Nessa noite, ela continuava divinamente linda e eu numa contemplação absurda, adormeci sobre relva.
Quando abri os olhos, vi que a mulher estava me observando. Fiquei bem quietinho e não me mexi. Mal respirava para que ela não percebesse que eu estava acordado. Não podia entender que entre mim e ela havia um tempo intransponível.
Agora, ela tinha na cabeça um chapéu ornamentado de flores escondendo um pouco seu rosto.
Depois, a luz da lua saiu detrás de uma nuvem e iluminou por inteiro a face dela. Quase tive uma síncope, tal foi o susto que tomei. Sua ternura era a mesma de muitos anos, durante minha infância e adolescência. Seu brincar de esconder atrás dos arbustos e o riso abafado enquanto corria pelo jardim como uma adolescente, era tão somente para chamar minha atenção. Ela estava feliz porque o filho pródigo havia voltado, ainda que não morasse mais no casarão. Quis tocá-la, porém entre mim e ela havia um espaço invencível e misterioso. Meu coração saltava descompassado, mas, aos poucos, fui me acalmando e entendendo que do outro lado, a vida existe, contudo, de forma intocável aos terrenos.
Olhando para mim, ela iniciou a mesma canção que ouvi quando estava à beira da baía, na noite que cheguei, agora sim, lembrava que essa era a cantiga de ninar que tantas vezes, na sua voz, me fez adormecer.