AS CEM OVELHAS
Domingo à tarde. Cuidava eu de apascentar as ovelhas e apartá-las dos filhotes. No outro dia, logo cedo, deveria ordenhá-las e depois tosquiá-las, porque era verão. No verão, tinha muitas moscas e era necessário cuidar bem do rebanho, para que não ficasse doente. Fazia esse trabalho com muito carinho, apesar da minha pouca idade.
Era uma pessoa sozinha no mundo, vim morar com essa família, num dia de muita sorte. Andava a esmo na cidade. Não tinha para onde ir. Estava apavorada, meu pai me esqueceu dormindo no banco da rodoviária.
Estava com fome e chorando muito, quando na travessia de um sinal, uma caminhonete quase me atropelou. A moça parou bruscamente, a um passo de mim. Depois, colocou o carro no acostamento e veio falar comigo. Levou-me com ela para que eu não ficasse ao relento.
Depois de alguns meses, meu pai apareceu por lá, mas, resolveu me deixar com eles, porque ele não tinha condições de me criar. Bebia muito e minha mãe tinha ido embora. Sinceramente, não fiz questão!
Ia lembrando desse passado doloroso, enquanto descia a montanha tangendo as ovelhas, na direção do curral. Elas tinham se acostumado comigo, que praticamente me acompanhavam. Eram mais de cem, mas, em alguns dias iam aumentar, por algumas dezenas estavam para dar cria. Parece mentira, mas, eu gostava de cantar para elas. Aliás, sempre gostei de cantarolar. A música espantava minhas tristezas e angústias. Chamava-as através do hino, As cem ovelhas e elas vinham correndo. Era preciso que eu não deixasse que os pequenos se perdessem das mães. Por isso, enquanto cantava, estava atenta.
De repente, o céu ficou nublado. O sol escondeu-se atrás das nuvens. Olhei e vi que eram muitas e pesadas nuvens de água. Escureceu o horizonte. Toda vez que as nuvens se punham a correr daquele lado, era tempestade na certa. E elas, literalmente, andavam à galope.
Estava sozinha, todos haviam ido para a cidade, exceto, Cirilo que não me largava.
Nesse dia, uma pessoa ilustre ia fazer uma palestra que era do interesse de todos os agricultores e pecuaristas, por isso, meus patrões foram à cidade.
Tinha que andar depressa, chegar com todas as ovelhas no curral, antes que a chuva desabasse.
Cirilo, do outro lado, me ajudava para que nenhuma delas ficasse para trás.
Cirilo era meu cachorro, Pastor Alemão, meu companheiro de todas as horas. Ganhei-o da patroa. Trouxe-o para mim, quando voltou da exposição de cães em BH. Fiquei feliz da vida, uma vez que me sentia tão só.
Pois bem, Cirilo cresceu, ficou adulto e assim como eu, aprendeu rapidinho a cuidar do rebanho. Atendia a todos os meus comandos e nunca machucava as ovelhas. Cuidava delas com o mesmo carinho que eu. Parecíamos uma família às avessas. Uma moça, um cachorro e mais de cem ovelhas, juntos, sempre.
Antes que tivéssemos atravessado o bueiro que havia sobre a estrada para servir de passagem aos animais, a chuva desabou. Foi nossa sorte. Ficamos cerca de uma hora parados, em baixo da rodovia, esperando a chuva passar. Cirilo guarnecia a saída e eu fiquei na entrada, de forma que todas as ovelhas deitaram para relaxar, enquanto as que tinham filhotes, amamentavam.
A chuva desceu com força. Relâmpagos e trovões rasgavam os céus. Aproveitei para cantar todos os louvores que eu sabia de cor. Para mim, era um afago na alma estar com eles e poder acalmá-los.
Assim que a chuva perdeu a graça de cair em abundância, entrei no curral. Depois que todas entraram, fechei a porteira e fui colocando cada filhote no seu devido espaço, separados das mães. Alimentei todos. Quando finalizei, já era noite.
Em casa, depois do banho, vesti o pijama e fui preparar algo para comer e dar o jantar de Cirilo. Vi que ele estava todo molhado e sequei-o com uma toalha velha.
Escovei os dentes e sentamos na varanda.
Até então, ninguém havia chegado da cidade. Decerto a palestra estava sendo proveitosa.
Peguei o violão e dedilhei a canção da saudade. Era a música mais bonita que aprendi com minha avó. Tinha letra, melodia e ainda tinha toda a saudade que eu guardava dela. Nasci ouvindo vovó tocar violão e cantar para mim todas as noites, depois do trabalho. Foi um tempo de muita felicidade. Depois ela se foi. Papai separou-se de mamãe e eu fiquei com ele, até o dia que me esqueceu no terminal rodoviário.
Quando penso nisso – vem à mente que não foi esquecimento, foi de propósito, mas, quem sou eu, para julgar meu pai!
Cirilo deitado sobre meus pés, parecia sentir toda a dor que eu levava no coração. Meus pensamentos voavam, retrocediam ao tempo das alegrias e das dores mais profundas. Se bem, que nunca pude me livrar delas, acho que se enraizaram em mim.
Retomo as cordas encantadas do meu instrumento e tiro das entranhas mais uma canção, dessa vez, cheia de amor. Um amor grandioso e correspondido. As cem ovelhas. Cantei todas as estrofes do hino. Depois chorei.
Ainda que a solidão fosse cortante, como o vento hibernal que desce da cadeia de montanhas enfileiradas desde os andes, tenho Cirilo, que mesmo sendo cão, me entende. Tenho também as ovelhas. Não são de minha propriedade, mas, sou eu que cuido delas. Sem elas minha vida seria muito pior.
Ensaio outra canção, dessa vez, uma do rei – Outra vez.
No fim, minha consciência diz que realmente são tantas outras vezes na minha vida, um pensar, um sofrer, um retorno ao ontem... todos me atingem a alma, como um punhal.
Preciso esquecer o que dói.
Coloco Cirilo para fora e vou para o quarto.
Deito, mas estou sem sono.
Se o passado é tão triste que não vale a pena lembrar, melhor estar no presente e sonhar com o futuro. Quem sabe, posso ter um porvir vitorioso!
Nesse pensamento, pego no sono.
Pela manhã, vou direto ao curral. As ovelhas me esperam. Eu as conheço e elas me conhecem. Cirilo me acompanha. Deita num canto e fica atento ao meu chamado.
Ordenho-as.
Ponho os filhotes para mamar.
Depois levo o leite para a cozinha.
Volto ao curral para tosquiá-las.
No fim do dia, todas estão sem lã. Leves e tranquilas para os dias quentes de verão.
O sol prestes a cair no horizonte. Eu cansada, com sede e com fome.
Olho as minhas mãos. Estão em petição de miséria. Sujas e cheias de bolhas. “São os ossos do ofício, minha filha!”, lembro que minha avó exclamava com essa frase, quando alguma coisa aborrecia a gente durante a labuta.
Tomo banho, janto e vou para quarto. Amanhã é outro dia. Tudo igual, nada novo. Tudo se repetirá.
O trabalho é assim, dia após dia, a repetição, o crescimento, o cansaço, o êxito e a vitória.
Chegando a hora de trazer as ovelhas para o apartar, subi outra vez os montes. Cirilo na frente, alarmando, para que elas ouvissem que estávamos em seu encalço.
Trouxemo-las e fiz a separação.
Meu coração quase saiu pela boca, quando fiz a contagem e faltava uma delas. Exatamente a ovelha de cor preta, que estava nos dias de dar a luz.
Não podia deixá-la, tinha que ir atrás.
Enquanto entrei no quarto para buscar a lanterna, ordenei a Cirilo que fosse na frente. Ele saiu em desabalada carreira. Fui atrás, devagar e chamando por ela.
Nesse momento, começou a chover. Chovia manso, mas, logo depois, a chuva ficou mais forte e começou a relampejar. Os riscos dos raios no céu eram arrepiantes. Tinha muito medo, contudo, o pior seria perder a ovelha mais valiosa do rebanho.
São Pedro estava mesmo valente nesse dia. Alguma alma devia tê-lo desobedecido para ele estar tão bravo assim. Pensei e achei graça comigo mesma.
Resolvi me proteger embaixo da varanda de ração do gado que é fincada no meio do pasto. Fiquei alguns minutos e ouvi o latido de Cirilo. Ele estava longe, no lugar mais alto do morro.
Pela sua forma de latir, devia ter encontrado a ovelha.
Subi o morro, cansada, exausta... quase sem fôlego, debaixo da chuva.
Demorei uma meia hora para chegar.
Lá estavam, Cirilo e a ovelha. Ela em trabalho de parto. Sofrendo.
Enrolei-a no meu sobretudo e desci a ladeira, com ela nas costas. Cirilo na frente, me guiando. Estava pesada, mas eu tinha que aguentar.
A cada vez que ela sentia contração, gemia e eu andava mais depressa.
Enfim, chegamos ao curral.
A chuva havia cansado e eu nem me dei conta.
Coloquei a ovelha no chão.
Não sabia o que fazer, então, massageei seu abdômen e entoei o louvor mais bonito...
Cantava com sentimento, enquanto as lágrimas desciam. Num instante, a cabeça do filhote apareceu. Fui acariciando a barriga da ovelha devagarinho, depois puxei-o pelo pescoço, com cuidado, até que ele saiu para fora. Era um cordeiro, tão preto quanto a mãe.
Cirilo não saiu de perto. Estava atento. Quando tudo terminou, vi que ele tinha os olhos cheios de lágrimas. Penso que entendeu toda a dor e também sentiu o significado daquele momento.
Nessa hora, os três choramos. Cirilo, a ovelha e eu.
Depois pensei: - Outra ovelha negra! Essa vai dar trabalho. Digo: Esse vai dar trabalho. Que eu esteja aqui para resgatá-lo e não deixar que se perca.
Poder salvar a mãe e salvar também o filho, era a maior de todas as vitórias.