CONTO SÉTIMO

Sempre aguardava com impaciência os primeiros dias de Outono, as primeiras chuvas, o odor da terra molhada, a bruma que revestia a serra. Todavia algo mudara naquela manhã: o húmus não lhe transmitia mais a sensação de pertença, nem a humidade, que se entranhava nos ossos, lhe dava desconforto, e extenuado que estava do verão, aceitava o pedido do corpo clamando frescor.

Não havia demorado anos até chegar ali, não se detivera, não esperara. Ainda assim, das vezes que avistara na floresta a cortina de névoa, nunca a transpusera, pois pressentia o medo de não mais voltar, o medo de se perder no desconhecido. Se bem que a névoa, nesse dia, fosse de natureza diferente de todos os sentimentos e emoções que, ao final da tarde, cobriam a vegetação de ciprestes e abetos, de tuias e sequoias, castanheiros e sobreiros, de carvalhos e carrascos.

Não determinara o caminho; antes, supunha ter sido o caminho que o escolhera. O que buscava estava na observação do que é espontâneo, no brilho que só a consciência poderia penetrar quando se expandisse para além do mundo dos objectos, e olhando a ténue névoa, encantava-se. Chegou a escrever poemas sobre a tremenda beleza da paisagem, dos estados de alma. A beleza era Deus, qualquer coisa de abstrato, mas não a árvore, o riacho ou o animal. O belo era, à sua imagem e semelhança, algo que não podia perceber senão pela relação com o outro, e sugeria ser a sua origem e não o sabia.

Abordar o acesso àquele mistério era tudo o que podia apreender, e atingi-lo, mais do que a representação, significava a perda da consciência. Desconcertado, julgou o universo como uma interminável crença! e ficou num estado de agitação: por um lado, despontava uma memória perdida em si mesma pela qual ansiava, primordial; por outro, divisou que as convicções, fossem elas quais fossem, até a ideia de Deus, não passava de um ouvir dizer. E aterrava-se! Dependia da réstia de pó, da textura da pedra, do diálogo interno para fazer sentido existir. E até este sentido, de facto, não subsistia senão no imaginário.

Disseram-lhe que a maior dificuldade seria a de acreditar em si próprio, e como homem comum, duvidou. Mas a essa manhã destinava-se o inesperado: uma nova sensação invadiu-o quando transitava pelas ruas e avenidas. Reparou nos prédios, cada edifício era um lugar mal situado, inapropriado, descontextualizado, que não previa um diálogo, e pior, aquele sucedâneo de paralelepípedos compartimentava a vida dos habitantes, isolando-os! do outro, de si próprios. Ninguém conhecia ninguém, nem os vizinhos. No metro, irrompeu por entre a multidão que se acotovelava, empurrando-se. Num jardim, velhos jogavam à Sueca. Algumas crianças brincavam e nos que passavam, nada havia para além de um aparente movimento individual, descontínuo. Uma mãe passou alheada, com uma menina pela mão. No gesto, aquela mulher era imagem abstrata só possível encontrar no aglomerado urbano. Mais à frente, um homem caminhava apressado, cheio de maneirismos. Na calçada, uma velha curvada teria percorrido a vida tal como carregava os enormes sacos que transportava. Só os olhares poderiam ser vagos, apreensivos, assustados, determinados, cansados. E para sua surpresa, o lugar que se pressupunha ser a cidade não o era, mas tão somente a dança rítmica e inerente a um padrão de actividade.

Porém, nada havia de arbitrário ou caótico, os homens são iguais nas suas propriedades, e ao processar-se o ciclo do universo, diferenciam-se pela natureza do que atraem.

Na avenida, ele expressava todos os homens: a criança órfã, frágil e abandonada, a vida desviada, perdida, encurralada; o sentir-se desnorteado, agrilhoado à imagem da metáfora da caverna, ou como aquele que, caído, permaneceria esquecido num poço sem fundo. Era também o que ria, o que estava feliz ou vivia obcecado.

A consciência comum sufocava-o! como sufocará todos os que anseiam a liberdade, e o medo, o medo de serem livres será o medo de se esquecerem de si próprios, será o medo de amar.

Junto de um muro, à sombra das árvores, a rua conservava-se intacta, só a luz diáfana era o céu radiante que se manifestava. Ah, se a sensação pudesse ser transmitida pela palavra, descreveria a indescritível beleza! Um sentimento profundo como nunca tivera deslumbrou-o, apótomo e inenarrável, tal a paz e a harmonia que o abarcavam na totalidade de ser. A luminosidade ambarina preenchia-o, repleta de amor e equinidade, sobrepondo-se à cidade, aos prédios, às pessoas. No imaculado brilho, o seu estado foi como o de criança, mas era homem e as suas acções envergonhavam-no. Contudo a visão era espaçosa como o céu, o que lhe proporcionou segurança; o bem e o mal, a justiça e a injustiça eram despidas de verdadeira identidade, e da qualidade do que é luminoso provinha a essência da forma. A aparição, de tão intensa e magnânima, comoveu-o, tombando-o ajoelhado, num choro de felicidade incomensurável. E pediu para regressar a casa, tornado luz!

No tempo descrito, o homem prostrado depressa se viu rodeado por um punhado de pessoas e de telemóveis. Vozes e buzinas escutavam-se longínquas. Só o carácter do acontecimento que o homem testemunhava se assumia intransmissível; para a multidão a experiência era inacessível, por isso, nas restritas consciências exultavam-se sentenças, sorrisos, e os comentários tinham a medida do que conheciam, amortecendo o som de uma sirene que se aproximava.

Do episódio, a fugacidade do que não tem substância permaneceria apenas como memória, pessoal, subjectiva. O homem, que se quis tornar criança, fora testemunho de todo o potencial de amor, mas ficara à mercê das pessoas na via pública. O poder, que ele acreditava estar na luz, não o podia proteger. Tão pouco estava na forma que se revelara a partir da luz e à qual atribuía uma afeição por que era capaz de dar a vida. Contra a sua convicção, compreendeu que tal imagem não tinha capacidade de o proteger no quotidiano, pois a luz tornada homem era, à sua imagem e semelhança, não mais do que a matriz humana, e soube-o além de qualquer dúvida.

Para onde quer que se olhasse, a estreita neblina dava lugar à asseidade e o homem testemunhou, na penumbra da tarde, o crepúsculo. Não soube se de uma ponte ou de uma passagem, um som sibilava agudo e penetrante; primeiro não o identificou, mas estranhou-o. À medida que o ouvido se adaptava, o timbre ressoava no espaço melodioso. Duas notas musicais, como duas pessoas, bailavam. Afastavam-se, rodopiavam, atravessavam-se, distanciando-se. Por instantes abeiraramse de tal modo que levavam a crer que se tornavam uma só, una e indissociável. Uma ilusão auditiva, pensou o homem. Pela folhagem um vulto dirigia-se-lhe, apenas a distância era audível.

Em qualquer outra circunstância, teria ficado atemorizado quando os olhos amigos do animal o acercaram. Estava demasiadamente perto para ter tempo de fugir, e demasiadamente longe para

não aceitar o que ocorria. Estupefacto, teve a conversa mais extraordinária que alguma vez poderia ter imaginado haver com um animal.

Lembrou-se de que fora surpreendido com uma voz de origem indefinida, uma voz que não provinha de lugar algum, e ficara com a sensação de ter sido o corpo que a escutara. Agora, cara a cara com o lobo na impressão rara do diálogo, a linguagem assumia a forma de pensamentos.

É verdade que quando criança lera e ouvira contos em que os animais falavam, mas percebeu que as histórias não passavam do resgate no domínio do imaginário dos homens, talvez uma semente deixada em cada menino para não esquecer algo de uma qualidade tão significativa que só poderá ser imaterial.

Então o lobo olhou-o bem no fundo dos olhos. E impressionou-se! O lobo reverberava! Um brilho cegou-o paradoxalmente singelo, e uma cálida temperatura acalentou-o. Do lado invisível do universo, uma parte de si incendiava-se; deixando de sentir o corpo, pensava-se. Viu-se a partir do início dos tempos nas múltiplas manifestações das variadas vidas. Infinitas linhas luminescentes descreviam-se. Com estas, campos de energia desdobravam-se, capazes de dar a conhecer-lhe o significado dos grandes elementos como a terra, também o de cada flor, o de cada bichinho ou ser senciente. E sem que tivesse um princípio ou um fim, era tão só sensação.

Na solitária viagem pela eternidade, o mundo em que viveu, e o único que conhecera, não mais existia, ainda que a cada manhã a cidade renascesse num novo dia. Para o viajante, tudo por que se apaixonara um dia ficava para trás. A casa, a família, aqueles de quem gostava. Uma lágrima escorreu-lhe pela face. Apenas o espírito vagueava e só o seu sentimento quase conseguia reencontrar os recônditos cantos onde viveu, os jardins em que os mais velhos continuavam a jogar às cartas e as crianças brincavam. Onde mães seguiam autómatas, com os filhos pela mão e homens afectados percorriam ruas e avenidas. Onde, nas calçadas, mulheres curvadas carregavam os enormes sacos tal como a vida as levava.

José Pais de Carvalho
Enviado por José Pais de Carvalho em 13/01/2020
Código do texto: T6840468
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