CONTO TERCEIRO

Quando desembarcou na ilha, não poderia saber que, ao subir a escura e íngreme escada, sentiria a mão roçar em algo áspero e cortante quando se apoiasse no corrimão. Foi uma dor aguda, da qual já não se lembrava ao abrir a porta do quarto, apesar de sentir uma humidade viscosa. Só se apercebeu da mão ensanguentada ao carregar no interruptor. Viu o sangue escorrer na direção do pulso. Cansado da viagem adormeceu, mas com o caminhar da noite o sono tornava-se agitado. Na manhã seguinte acordou febril. Durante a tarde quase não se conseguia mexer, levantar-se da cama. Imóvel, dormia. O corpo pedia-lhe descanso, mas o frio da madrugada acordou-o. Por instantes, num gesto, deteve-se. Ao pensar em nada, numa situação em que a racionalidade quotidiana não interferia e o pensamento fluía com o discernimento necessário, uma memória, referência do passado, arrostara, e no olhar havia um brilho: no mundo mágico, teria de decidir entre o fascínio da aventura no desconhecido ou granjear a liberdade, mas talvez não fosse desígnio deliberá-lo.

Distante da aurora, o homem revirava-se agitado entre os lençóis. Levantou-se para ir à casa de banho e não reparou no relógio. Estremunhado, olhando através da janela, distinguiu um reflexo do que se lhe afigurava uma moldura. E estranhou. É cedo, supôs ao sentar-se na cama. Pela primeira vez sentiu sede e erguendo-se, procurou uma torneira. Depois voltou a adormecer. Quando deu conta (não porque destrinçasse as batidas ainda distantes na porta do quarto, mas por entender o que sonhava não ser um sonho), ante os pensamentos repetitivos do monólogo, vislumbrou a obsessão dos homens e o peso cultural do que nem ele próprio percebia, induzindo-o a cumprir uma realidade que não a sua. Não tinha sido talhado para as tarefas a que se propunha, se bem que uma voz lho transmitisse, nunca quisera ouvir. Nunca quis admitir que estar sozinho preenchia a sua alma.

As pancadas na porta, incessantes e cada vez mais nítidas, incomodavam-no. Atarantado, descortinou no umbral uma mulher que, do silêncio, o observava. Pouco falaram e o que foi dito restringiu-se ao essencial. Mais tarde ela voltou, acendeu a fraca luz na banquinha de cabeceira e colocou-lhe na mão ferida uma compressa. Ele ardia em febre. Durante os dias que seguiram, a hospedeira cuidou dele. Raramente se mantinha desperto e o sono alternava-se com a vigília e a dormência corporal.

Memórias ou reflexões culminavam como se a consciência possuísse senso crítico: vivera enfronhado nos sonhos e nas letras e não percebera cumprir uma realidade já desfraldada em outras tentativas. Meia dúzia de livros, o hábito de se refugiar no campo, indiciavam-lhe traços de uma personalidade sensível, dos quais gostava e lhe davam conforto. Todavia carregava o fardo das desavenças, dos desentendimentos e dos conflitos, cuja finalidade questionava. Com os nervos em franja, sentia intensas as pancadas no coração, e perturbava-se. Seria um pesadelo o sonho – ou a vida! Dias passaram como se fossem horas. Revolto, ouviu a voz da tempestade, a chuva na vidraça, o apelo do vento enaltecendo as vagas, silvando entre as copas das casuarinas. Prostrado, revisitava a sua existência ao olhar pela janela. O céu, carregado das nuvens, a praia, deixavam-no melancólico (pelos momentos felizes que passara junto ao mar, numas férias). Até mesmo a sua origem (a pequena vila onde nascera, longe do mar) e o gosto pela arte sempre o transportavam às mais intensas impressões.

Com a febre, a percepção comum deslocava-se, arrogando-lhe uma época sem-razão ou sugerindolhe o estado de alma propício, ou outro mundo. Ao abrir os olhos, o reflexo com que de novo se deparou à medida que se adaptava à luz revelava uma pintura. As poucas pessoas no areal, a carroça puxada pelos animais, a fria paisagem, o capim, patenteavam-se através da solidão ou no todo visível de um quadro de Van Gogh: “Vista do Mar de Scheveningen”. Mas a atenção dirigiase para lá do barco junto à praia, ainda que nobilitado pela luz das crespadas ondas, concentravase além do horizonte mais profundo do que o céu e o mar. No sono sentiu-se absorvido, esvanecendo-se através do que se lhe oferecia não perceptível. Era como se a pintura não fosse mais do que uma ilusão, antes obedecesse a outra ordem de questões, a uma disposição existencial bem mais dolorosa, erodida, fantasmagórica, só descortinável por detrás do céu e do mar à minúcia de uma lupa, que lhe permitisse esmiuçar cada pincelada, deter-se nas texturas, nas formas tridimensionais que o pintor usara para chegar ao resultado final, e espantava-se. Primeiro parou no que apreendeu serem os tons suaves da pedra corroída pela força das águas e do tempo, e fascinou-se: um mundo desconhecido arrebatava-o. Perambulava por lugares áridos. Assombrouse com o que sugeria ser uma ossada, um fémur, qualquer coisa do mundo das trevas. O crânio, o sinistro, o que se omitia neste lado do mundo e a impressão suscitada do seu estado existencial, árido, permanente. Dois rostos, quase como dois crânios. Um, mais nítido, na expressão facial lembrava um sorriso, que associou à oportunidade da sua vida, à oportunidade por estar ali, naquela ilha. Entendeu que, como na pintura de Van Gogh, o mundo, tal como via e vivia, bem como o dos homens, não era mais do que a manifestação de um equívoco de percepção.

Quem pensava ser não era mais do que obscurecimento. A pintura em nada era diferente e tampouco igual ao seu estado de realidade, conquanto disso não tivesse ideia. Penetrava num universo do qual só ouvira falar – e via-se num tenebroso vale ladeado de cavernas, sombras e penhascos. Nem o sobressalto o levou a acordar, tão aprisionado estava por todo o mal causado pelos desejos não pensados, sem um único remorso. Consumido por demónios infernais, o sofrimento apoderava-se por inteiro dos sentidos, da existência e sequer estava ciente. No vale, as ravinas estreitavam-se, precipitavam-se sobre ele, infestadas de cabeças de coelhos, de pássaros, de leões, de rinocerontes, de mosquitos e de todo o tipo de animais que matou, nesta e em todas as vidas anteriores, perdendo a consciência!

Retomou-a quando se debatia no mar das próprias lágrimas, as que verteu desde o início dos tempos nas múltiplas formas de quem foi, afogando-se. Por instantes pareceu acordar do pesadelo, mas logo mergulhou novamente em padecimento, consumido pelo tempo que viveu, em tão profunda e opaca escuridão que nem os seus membros distinguia. Então o vento soprou. Labaredas ígneas espelhavam a sua ignorância num edifício de ferro incandescente. Cada dia, ali, eram anos na referência do tempo que conhecia. Cada vez que parecia despertar, a ideia de felicidade equivalia ao instante em que já nem a dor sentia, mas ainda assim visões abarcavam-lhe a soma total das faculdades. Perdia a noção de si. Acólitos atiravam-no em conjunto com outros seres para poços de metal em brasa, onde o seu corpo e o das suas vítimas já não se diferenciavam no fogo que os consumia. E despertando, sepulcral, da matéria de que se faz a vida, ora gélida, ora escaldante, acordou, transpirado, desgrenhado, aturdido.

Estava sozinho. A dado momento, precipitou-se com deleite para uma vala. Queria refrescar-se do fogo, pois tições queimavam-lhe as carnes, perdendo uma vez mais o siso. Um rio surgia à sua frente. Homens corriam para chegarem ao leito. Sedentos, competindo vorazes, precipitavam-se;

contudo o rio distanciava-se. Na cegueira, o viajante viu água onde tão somente cadáveres pútridos existiam, e sentiu-se arrastado entre os corpos apodrecidos. Ser devorado por vermes, decomporse! – e lutava com todas as forças. Não queria morrer! Perante tal espectro, a luta travava-se na consciência, uma parte de si impelia-o a deixar-se levar pela corrente; outra, recusava-se a morrer. Disse-lhe uma voz que a sua hora não tinha chegado – e foi determinante! Da tensão, irrompeu, intacta, uma força incompreensível, capaz de reverter a situação. Conheceu o seu erro! Não podia exigir que o mundo fosse à sua imagem e semelhança. Não podia forçar que a vivência fantasmagórica, cadavérica, desaparecesse sem se cumprir. A ideia de felicidade equivalia ao tempo em que a dor, de tão intensa, deixava de existir, e sem pensar no futuro bem como no passado ou se reter no destino, abandonou-se. Aproveitando um momento livre da percepção (na acepção do que possa ter sido), viu-se na margem, mas não se reconheceu. Não lhe era claro o que sucedia. A medo, olhou de relance para o rio e viu-se arrastado pela corrente, indefeso. Olhou para a margem e viu-se aí; olhou para o inferno a partir da margem e também lá se viu. Numa inesperada sensação, a percepção revezava-se a cada segundo, pois o destino, ou o que lhe poderia acontecer, não importava mais. Compreendendo que era capaz de estar em dois lugares em simultâneo, ganhou à vontade para lidar com o medo. Gradativamente, todas as suas forças se concentraram em emergir da decrepitude. Devagar, chegava enfim à margem. Pela urgência, sentiu ser feito de sonhos que transitavam de uns para os outros, sem nunca encontrar o âmago. Na visão infernal apercebia que a fome, o frio, o calor extremo, bem como todo o sofrimento nos diferentes reinos, advinham da felicidade do que teve, e isto era a sua maior infelicidade.

Do umbral, a velha mulher acompanhava-o, quem sabe se já do início dos tempos! Todavia o viajante dormia. Na vidraça caíam as últimas gotas de chuva. Era hora de quietude. Ao acordar, reparou que a tempestade tinha passado e da janela olhou o sol, as árvores e o mar. Tinha decidido ir para a ilha, alugara o quarto à mulher e isso trouxera-lhe paz. Uma impressão indefinível, naquele momento, apoderava-se dele. Tons vibráteis e inóspitos tocaram-no como se fosse uma criança. O sol estava alto e de quando em vez chuviscava. Tão-só sabia que tinha dormido, mas não por quanto tempo. Na mente sentiu uma leveza e percebeu que já não tinha febre. Havia uma maior nitidez no ambiente ao redor, uma lucidez no pensamento, tal e qual a sensação de olhar o céu límpido após uma trovoada de verão.

Passados dias, recuperado, caminhava na orla lado a lado com a velha mulher. Deambulava, quando lembrou o inconcebível que foi ver-se na margem. Um pensamento ocorreu-lhe: e se o que me aconteceu não foi um sonho ou nem sequer foi o mundo quotidiano? Agora, voltava a percorrer a margem mais assustado do que nunca, de uma maneira diferente, mais assertiva, mais contextualizada, mais loquaz, porém não no domínio da razão. Então o corpo recordou toda a sua vida ter visto casas abandonadas que, com o tempo, iam caindo até não haver pedra sobre pedra. E gostou do exemplo, enquanto pensava que o mundo existe tal como é por o pensarmos tal como o fazemos, senão com certeza seria de um modo diferente. Se as pessoas continuassem a pensar aquelas casas, elas não teriam desaparecido. Talvez o exemplo das casas servisse para se perceber como o mundo pode mudar, ou podemos mudar o mundo sem forçar.

Lendo as suas reflexões, a velha mulher disse-lhe que o que ele acabara de pensar provinha do conhecimento silencioso, esse conhecimento que atingira quando, no confronto com a própria morte, entendeu o que o espírito representava.

Na praia, os pés enterravam-se-lhe na areia; na dúvida, olhou para trás procurando peugadas. A mulher então, dando-lhe o braço, segredou-lhe: o espírito, só escuta perante actos de total desprendimento, de entrega total, pois são actos de liberdade.

José Pais de Carvalho
Enviado por José Pais de Carvalho em 12/01/2020
Código do texto: T6840321
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2020. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.