CONTO INTRODUTÓRIO
Com o avançar da idade, agarrava-se à memória dos bons tempos, da juventude, das pessoas que amou, dos episódios que permaneceram; em tudo similar às narrativas que perduram na memória possível dos homens, quando se fala de uma época provável.
Nessas narrativas, tantas vezes recriadas, em que o imaginário e a realidade se confundem, o tempo dita o modo como são contadas. Na presente, à semelhança dos contos tradicionais, poder-se-ia começar por era uma vez, quem sabe se aludindo a uma Era representada pelo Paraíso ou a um inconsciente colectivo em que o homem, então menino, vivia feliz. Em total harmonia, os animais, as plantas, as pedras, a água, o vento eram parte do espírito, e o silêncio interior o habitat, mas o menino tão-pouco tinha disso consciência ou algum motivo para pensar no assunto. Com o passar dos anos o espírito revelou-se-lhe, e ele, que nunca precisara até ali de se questionar, tomou a voz proveniente do silêncio como sua e, confuso, entendeu os pensamentos como dele.
Entretanto, tornou-se homem. Incapaz de destrinçar o engano, cismava à medida que ganhava consciência do que sabia, desenvolvendo a ideia de um ser à parte, o qual podia decidir e planejar o quotidiano. E deste modo, ditou a natureza e o carácter das acções e dos pensamentos.
Não obstante o espírito de novo comunicou-se com ele. Como da primeira vez, o que o espírito lhe transmitiu não foi entendido; antes, pelo contrário, contradizia a imagem que aos poucos construíra de si. Sabia muito bem o que fazer e como fazer. De um menino feliz, tornava-se um homem infeliz. Sofria as consequências dos actos e os equívocos dos próprios pensamentos. Incapaz de se olhar, enredava-se em explicações e justificações, e autocompadecia-se. Quanto mais pensava em si mais ignorante se tornava, mais conceitos tecia, em mais dúvidas se enredava, criando fantasmas e narrativas incapazes de estabelecer relações afetivas prósperas – e distante estava o tempo de quando foi menino!
Perante tamanha resistência, o espírito foi forçado a criar artimanhas para se fazer notar e, por momentos, o homem pensou ter encontrado o caminho de retorno, tal a memória que ainda subsistia, mas o senso de individualidade impedia-o de escutar a verdadeira natureza. Então impunha à realidade crenças, hábitos e convicções da sua própria criação, baseado no desejo de ser feliz. Mas como o objecto do desejo é o prazer e a não satisfação, a insatisfação, emoções como a ira, o orgulho, a inveja, a ganância, ganharam um significado tal que as idolatrou. E sem saber que cada emoção só nascia a partir do objecto do desejo a que se apegava, tornava-se um ser essencialmente obsessivo.
E deste modo, ora contente ora infeliz, o homem deparava-se com o enorme labirinto com que o espírito o confrontava. Quanto mais buscava soluções racionais e desenvolvia o raciocínio lógico, maior a insatisfação com que se deparava. Perdido na teia que construiu, a vida não ia além de um conjunto de preocupações, obrigações, deveres e responsabilidades a que ele dera vida, a fim de justificar a existência.
Mas o tempo a todos ensina e com o avançar dos anos, já velho, o homem começou a perceber os enganos, a entender que afinal dera importância ao que a vida lhe mostrava não ser tão importante. A independência que pensara durante tanto tempo ter ou o destino, adquiriam um olhar diferente.
Pena que para o homem essa noção viesse lado a lado com o envelhecimento, e impossibilitado de reverter o passado ou ter energia que lhe permitisse recomeçar, restava-lhe a angústia e a raiva por ter errado o objecto da sua existência.