CONTO ANTERIOR

O homem acordou assustado. Já na véspera não conseguira dormir. Os mesmos pensamentos sucediam-se, indiferentes ao medo que sentia. Acabara por adormecer já de manhã, mas fora um sono inquieto. Acordara diversas vezes, ou melhor, ficara naqueles estádios intermédios entre o sono e a apatia, incapaz de despertar, revirando-se sobre o colchão e desfazendo a cama, autoinfligindo-se. Não encontro uma solução, era a única ideia que se lhe aferrara e que o torturava; não porque fosse exatamente assim que acontecia, mas, antes, porque algo abstrato o avassalava, impedindo-o de reflectir, e até o que sentia era difuso, não claro, transcrevendo-se no que pronunciava, o que vai ser de mim! Quiçá perdera a esperança de retornar si!

Não se permitia pensar o que pensava nem sentir o que sentia, então era capaz de olhar apático e indiferente a subtil cor vermelha do hibisco demoradamente – por vezes o sentir suportava-se na interpretação. Ele era acima de tudo mental. E como pensava! Mas os pensamentos fugiam-lhe. E não querendo sentir, preferia pensar…. Morreu o António! sinto a sua falta. O que ele tinha de extraordinário era a bondade intrínseca. E sem o admitir reproduzia a dor: vou sentir a sua falta, da sua generosidade, das nossas conversas dispersas, do imaginário de um mundo em construção, das utopias, dos projectos nos quais a cada momento imaginava o António encontrar a satisfação interior. Outras vezes, a memória abarcava-o e acerca do lugar onde vivia desabafava: como foi e como é! A rua de casas antigas, desfigurada por prédios que detestava porque não respeitavam a traça arquitetónica do lugar, a árvore que arrancaram e o entristeceu, o excesso de carros e a ausência de lugares para estacionar, o número demasiado de pessoas concentradas em pequenas áreas habitacionais – uma insatisfação tolhia-o, sem contudo saber o que o preencheria. As recordações passavam sem que as apercebesse. O passeio na praia, o rebentar das ondas, o vento, e a mente que fervilhava no silêncio não realizado. Se ao menos contemplasse a paisagem na praia, no campo ou na cidade! se ao menos o silêncio fosse a ínfima possibilidade! ou lembrava-se, inadvertido e mórbido, do que deveria ter feito e não fizera, do que adiava permanentemente.

Quando mais novo, pensara casar, ter filhos, ter um trabalho, ter uma vida bem-sucedida. Idealizou uma família feliz, uma segunda casa na praia, viajar pelo mundo, assistir aos concertos de verão, ter um carro topo de gama e êxito como profissional. Quando olhou para si, tinha uma filha que raramente via, uma ex-esposa de quem há muito se tinha divorciado, uma profissão em que mudava de empresa com frequência. Hoje constatava que o emprego nunca lhe dera segurança tal como imaginara: em algumas ocasiões, despedira-se porque estava certo de que o mercado de trabalho garantia a sua especialização; em outras, porque a firma falira, e agora com a idade começava a entender a profunda diferença entre o que ouvia e tomava como certo, o que significavam as expectativas, o que projetara para si, o que vivera e a realidade.

Pressentiu paralisado que seu seria por tempo determinado o apartamento em que vivia; escutou o relógio de parede num repente dar a badalada que assinalava qualquer quarto-de-hora e sentiu o peito estrangular-se. Em que dia da semana estava? Havia dias que não o sabia, tão-pouco as horas. A vida estilhaçara o espelho em que se via.

O estado avassalador da sua existência impedia-o às vezes de estar sentado, então caminhava pelas divisões, acreditando que andar o ajudava a pensar, ainda que não soubesse que caminhar apenas

o ajudava a recordar, mas não as coisas mundanas. Na tensão em que permanecia, os pensamentos aquietaram-se e imprevidente, não o percebia. Na contradição de homem comum, o desejo de morrer estava implícito, e não aprofundar a morte, não pensar nela, era a proteção que manifestava o movimento para a vida numa cultura materialista. Por suposto, indagou-se sobre o que poderia saber, sem ter a lucidez necessária acerca da morte, uma vez que a vida não passava de um caos, sem frugalidade nem beleza! Entrementes, não se apercebeu que a respiração se aquietava e os olhos por momentos luziam; não obstante voltava a confortar-se nas suas sensações – nem uma emoção conseguia descrever ou um pensamento podia delinear.

No meio de tanto obscurantismo, havia períodos em que demonstrava alguma clareza, senão um sentido crítico: quem era, a visão singular detida em si mesmo, matava-o! conjeturava. A autoimagem surgia como a origem do seu egoísmo fratricida. Quanto mais pensava em si, mais subjugado estava à concepção da individualidade. Queria programar a vida, possuir o controlo dos actos, voltar a trabalhar, ter alguém ao lado, mas, ao invés, somente encontrava o desespero, a frustração. Parecia-se assombrado, amaldiçoado. O desespero, a falsidade, a hipocrisia, a violência, era tudo o que encontrava em si e nos outros. Sem esperança e paz, restava-lhe a insatisfação, a destruição.

Quando pensava, já não era sequer em si que pensava, tal era a proporção que os acontecimentos adquiriam dentro dele, e impressionava-se: os telejornais noticiavam actos de imbecilidade colectiva, actos homicidas individuais e coletivos, de violência sanguinolenta, de guerras, de assassinos incendiários, mandatários organizados, cúmplices de políticos e de empresários sem princípios que declaravam o contrário do que faziam, para quem o lucro e a ganância estavam acima de qualquer valor ou princípio ético, moral e filosófico.

Como poderia haver alguma verdade nos que defendiam a exaltação do ego para evitar o sofrimento provindo da insegurança emocional ou de emoções de insatisfação sobre os outros? Por que uma pessoa de capacidade média estava feliz e outra com qualidades acima da média se sentia insegura e infeliz?

Lembrou-se das vezes que, quando criança, poderia ter ouvido dizerem-lhe assim não chegarás a lugar nenhum ou de outras frases similares em que a impressão negativa, as comparações, eram transmitidas pelos adultos quando lhe ensinavam as habilidades quotidianas, mas nada disso fora um fator marcante em seus caracteres.

Agora nem conseguia pensar que tipos de situações o faziam sentir-se mal, que emoções negativas trazia das relações com outras pessoas, se bem que pouca importância desse às opiniões. Nunca fora defensor de comparações, quer porque tivesse uma personalidade forte, ou porque compreendesse que cada um tem o seu lugar próprio - era suficientemente frontal para dizer não! Sequer carecia da necessidade de ser aprovado por outrem!

Sem trabalho, quase sem amigos, quase sem dinheiro, um estranho dentro da sua pequena família, encurralado em casa e perdido na noção de tempo, disse para um dos últimos amigos que não havia continuidade, a vida estilhaçara-lhe a imagem que formara de si durante o percurso, não fazia mais sentido sustentar o mundo, porque tudo acabara. Só a morte lhe restava! De nada adiantava pensar, por pensar nada mudaria, até essa possibilidade a realidade lhe tinha tirado.

O que lhe acontecia retirava qualquer equivalência ao dia a dia. Ele, que tudo fizera, confrontava-se agora com circunstâncias opostas. De repente a sua existência não se enquadrava com a relação que adotara com o mundo, com o seu comportamento, com os seus pensamentos, com a maneira que deveria sentir. A falta de um propósito além do quotidiano tornara-o um desgraçado, incapaz de manter a família; sozinho, regressava à vida miserável, à tristeza e ao desespero.

Sem um elo que lhe conferisse sentido existencial, não conseguia nem sequer aperceber-se do que sentia, quanto mais manifestá-lo!

Ia perder o apartamento em que vivia, e esta era a evidência mais imediata! O medo da perda acometia-o, com este também o senso de continuidade se desvanecia sem de tanto se aprestar, abrindo uma brecha na sua racionalidade. A autorreflexão desmoronava-se, perdia o norte, quando escutou a campainha, e gelou! entrou em pânico, não abriria a porta. Àquela hora ninguém iria tocar a campainha! Atemorizado, discorreu que lhe iriam cortar a eletricidade, recuperando o diálogo interno, restabelecendo a resiliente autorreflexão. Não soube afinal quem batera à porta do prédio, mas os hábitos obsessivos concentravam-se no seu imaginário, sustentando a identidade que autocriara; fixava-se na antiga percepção, embora não revelasse a mesma consistência. Podia compreender, como compreendia, os comportamentos alterarem-se ao longo da vida, mudar de opinião, de reações, mas ver-se no meio da rua, sem um local para dormir, fizera-lhe a razão parar, não tinha equivalência em seu inventário existencial. A totalidade da imagem que possuía sobre si quebrara-se e sem enxergar uma alternativa, entrava em colapso.

Durante muitos anos, pensara a liberdade como prerrogativa, a de expressar a livre opinião, ou a motivação para defender direitos, deveres e obrigações; durante muitos anos, encontrara na liberdade o lugar capaz de suprir as necessidades quotidianas, e questionava o que seria a liberdade, pois só encontrara a sobrevivência e a pobreza – talvez porque nunca se tenha apercebido de que a liberdade é exatamente o inverso, qualquer coisa que refere uma qualidade separada do sujeito. Inconscientemente, lembrou-se de quando casara, de um período em que tal não acontecera, em que percecionava uma áurea de paz interior e ao seu redor uma presença intrínseca e indescritível. Na companhia de algumas pessoas, havia feito uma espécie de peregrinação, percorrendo diversas cidades, igrejas e lugares. Na viagem, nos momentos em que se quedara em cada um dos locais, houvera uma ritualidade envolvente, na qual havia invocações específicas, momentos de culto. Se bem que ele fosse em parte descrente, algo modificara transitoriamente o quotidiano. A disponibilidade mudara, radicara-se na aceitação e no bem-estar dos outros, e bastava-lhe para ser feliz. Foi a altura da vida em que até quando tinha gastos imprevistos, o dinheiro lhe aparecia. Mas a força da individualidade sobrepôs-se: assaltado por dogmas de carácter civilizacional, deixara de ter disponibilidade para as pessoas; pensando nos bens que tinha, nos que queria obter, voltara a pensar unicamente em si. Depois divisou que a aureola tinha desaparecido, pois o hábito dominava-o de tal modo que descria de algo inominável, algo que não parecia existir e todavia existia. E ao não colocar em primeiro lugar o que não-tinha-nome, descrendo, via-se perdido e infeliz, bem no fundo, com pena de si. Sentia saudades daquele tempo, mas a força do hábito era mais forte, a sua autoestima, o seu orgulho, estava em primeiro lugar e hoje preferia sofrer, impedindo-se de abarcar a realidade mais subtil.

Quando pensou na filha (sentira durante tanto tempo a falta dela), justificou-se, Deus não queria que estivesse com ela, e com remorsos olhava-se arrependido. Não sabia o que fazer, percebeu que

não era ninguém, não passava de um falhado, e cheio de pena auto-compadecia-se. Talvez nunca tenha distinguido que o pensamento racional criara uma auto-imagem suportada pela auto-estima; logo tornava-se para ele imperceptível que só o auto-compadecimento podia sustentar a auto-estima. Então deitou-se na cama pensando a morte chegar, e imaginou-a!

Era um dó não saber que apenas poderia recapitular a vida e esperar que a morte o levasse sem resistência, sem nada esperar!

José Pais de Carvalho
Enviado por José Pais de Carvalho em 12/01/2020
Código do texto: T6840315
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