CONTO PRIMEIRO

Toda estória tem um começo mas, onde quer que comece, cada uma tem o seu herói. Pode ser a de um imperador ou a de um servo cujo caminho vai da ignorância ao conhecimento, da inocência à experiência, mas os motivos pessoais sempre se sobrepõem e o passado, irá encontrar explicações para justificar o presente e outras vezes o futuro, ou elaborar um modelo para si mesmo.

Esta estória, todavia incomum, diz-nos que ao personagem se lhe afigurara o inevitável destino de ser o que sempre fora, mas não se lembrara da morte. Incorrera-lhe a cava e funda solidão por que deambularia nos tempos ulteriores. Antes, surgira a tristeza, o desamparo, a angústia, depois, a desesperança, o desalento; por fim, não se importava mais com o que lhe poderia acontecer. Talvez porque, irrefletidamente, pensasse na improbabilidade de viver algo pior ou, excessivamente orgulhoso, calculasse a insignificância do que poderia estar para vir, conquanto suportasse a dor para sustentar a imagem que formara de si, ou fosse incapaz de encontrar um caminho ou a sua origem.

Sairia da cidade tal como chegara um dia. Na véspera, jantara com os companheiros de todas as noites boémias e despedira-se com um até amanhã, ou apenas foi embora sem nada dizer. Fizera a mala, sem chegar a saber se deixava para trás uma parte de si ou somente os objectos que supôs darem à bagagem excesso de peso. Partiria ainda nessa noite.

Pela última vez olhava o horizonte daquele lugar, não mais! Não mais sentiria as memórias do que no horizonte se permitia enxergar, a sensação insuportável do calor húmido, das quentes noites, as trocas de ideias, as conversas, e no íntimo, profundamente visceral, o que pensara, o que lera, o que sentira, o que meditara, e pior, o discurso e o conflito interior, o hábito da racionalidade (de categorizar, analisar, separar), distanciando-o de si mesmo, autoexcluindo-o de tudo e de todos (era um perigo pensar), e aniquilava-se. Era suposto entregar-se ao destino, mas o momento, o da derradeira oportunidade naquelas terras, com aquelas gentes, era todo o presente, nada mais possuía. Incapaz de articular qualquer pensamento, sem saber se em sofrimento pela escolha, se pela vivência até monástica e boémia, pela última vez sentia a dor de abandonar a brisa quente que o preenchia àquela hora do dia, e num estrebuchamento chorava, incapaz de expressar quaisquer palavras, apenas uma paradoxal emoção de gratidão nascia.

Eis que, num gesto, o espírito lhe revelava os seus segredos e o homem, cujo tempo decidira o modo como percepcionava, silabava o profícuo sentimento do amor por todos os homens. Exultava, por entre lágrimas, em total atenção, o padecimento de todos os homens como seu. Que todos os males do mundo fossem apenas seus! Que fosse ele o único no universo a sofrer! o único a estar perdido! o único a não saber quem era!

Recorrente nos enganos, tomou a voz como sua. Embora a quisesse eternizar, não distinguiu a subtileza do que lhe acontecia. Quando, como todos os seres humanos, estava aprisionado aos pensamentos, ao fazer o check in, uma senhora trocou breves palavras com ele, mas não se apercebeu de imediato do sinal. Na sala de embarque aprofundou o conhecimento sobre ela. Dentro do avião eram os dois os únicos passageiros, não quer dizer que assim fosse, apenas sobejava a memória do ambiente em tons vermelho-alaranjados; mas não se alheou da intuição, só que a tanto não tinha discernimento. A senhora, que talvez soubesse o espírito tocá-la, nunca lho revelou e falou-lhe sobre coincidências ou talvez sobre fé ou, sem saber, o diálogo entre ambos nada possuía

de relevante ante o desígnio do espírito que se manifestava. Em breve o avião iria fazer escala onde os caminhos se bifurcariam. Ela dirigir-se-ia à cidade de São Paulo, ele seguiria para o Rio de Janeiro. Porém a força, que tudo transforma e reordena, manifestava-se. O espírito entestara-o quando ele não tinha mais um propósito e, vulnerável, seduzia-o. Já no adro do aeroporto, acorreu à porta de saída; aos primeiros raios de sol, deslumbrou-se com a singeleza da paisagem: as cores das flores, os canteiros, as palmeiras, a calçada. O tempo que avistava era o tempo não descrito mas tinha de despachar-se: persuadido pelo espírito, precisava comprar o bilhete. Partiria num novo voo em direção a São Paulo dentro de uma hora.

Com um endereço em uma das mãos, procurou um táxi. Num prédio tocou à campainha e sentiu o estalido da porta da rua a abrir-se. O que lhe acontecia ganhou significado através do gesto da senhora que revia. Cada um poderia entender o que lhes sobreviera de um diferente prisma. Quanto a ela, só ela poderia saber; já o homem não se tornara consciente porque percebera, mas porque o espírito o penetrara. Nunca falaram sobre o sucedido, uma vez que o conhecimento coexistia independente do efeito túrbido da linguagem.

Como em todas as estórias há um final, nesta não será diferente: foi a de um homem que olhou para o seu percurso a partir da oportunidade de examinar o espírito para compreender que força é essa que tem os comandos da existência.

José Pais de Carvalho
Enviado por José Pais de Carvalho em 14/08/2019
Reeditado em 12/01/2020
Código do texto: T6719949
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