A despedida do Filho de Júpiter

Hoje eu acordei sorrindo e fingindo muito bem uma tranquilidade. O quarto estava quente, meu corpo suado, mosquitos zunindo, pensamentos atordoados, uma música confusa no fundo, hoje será um belo dia, pensei.

E continuei me enganando.

Fui tomar um banho e a água gelada escorreu pelo meu corpo e por alguns momentos eu me senti alheio a esse mundo. Era eu, a água e meu momento. Não havia música em meus ouvidos, embora eu só tome banho ouvindo música, não havia o som da água caindo no chão do banheiro, não havia o barulho do impacto da água no meu corpo. Era somente eu, a água e um enorme silêncio que me entorpecia e me jogava numa espécie de vácuo temporal.

Não havia o tempo, não havia espaço, não havia matéria, não havia nada além de mim mesmo e a sensação de vazio.

Foi quando um pensamento me veio à mente e meu corpo começou a reagir. Lentamente senti a água na minha cabeça, no meu peito, nos meus braços. Ouvi a queda d'água no chão. Escutei a música que então me invadia e pude sentir o contato dos meus pés com o azulejo gelado.

Embora eu tenha voltado de uma viagem longa e silenciosa onde tempo e espaço são inexistentes, o tempo me pareceu e me parece ausente. É como se tudo fosse um mero instante e o passado nada mais do que memórias imaginárias ou pura ficção. O futuro me parece uma mentira e toda expectativa é só mera distração. Sinto que não estou perdido, mas não sei onde ir.

O presente é a dádiva do ser que vive. O passado é a maldição do ser que chora. O futuro é a ansiedade do ser que precisa de certezas. E eu me vejo aqui, sentado, no meu instante. Cada palavra que aqui escrevo se torna passado e já nem reconheço mais a veracidade das minhas experiências e de minhas frustrações.

Eu devo estar perdendo a sanidade ou simplesmente já perdi. Como posso sentir felicidade e tristeza ao mesmo tempo? Como posso sentir angústia, solidão, aprisionamento e ao mesmo passo ser feliz, ter amigos e me sentir livre? Como posso não acreditar no tempo se os verbos que aqui escrevo já falam sobre o tempo de minhas ações? É engraçado perceber como a invenção do tempo percorre os mais diversos graus da realidade. Se o tempo é relativo, talvez sua inexistência seja possível, é só relativizar a existência a ponto de transformar o irreal em imaginário concreto.

Eu percebo que a minha realidade tem uns momentos só meus. Eu percebo que a minha verdade tem mentiras próprias. Eu percebo que as minhas ilusões tem suas veracidades. Eu percebo que meus valores tem seus entraves. Eu sinto que minhas dores tem seus remédios. Eu vejo que o meu amor tem seu tédio. Eu me destroço na angústia que me fortalece. Eu me construo na fantasia que me destoa.

São tantos "eus" que já me distanciei de mim. Talvez eu esteja descobrindo que o tempo é a desculpa que a mente precisa para retroceder. Talvez o retrocesso, o declínio, a decadência seja somente uma questão de expansão do espaço e do tempo (irreal, imaginário e concreto). Quanto maior é a ideia do todo, mais vazio é a ideia do tão ilusório nada.

Quanto mais eu navego nas minhas ilusões verídicas mais cheio de mim eu fico e me distancio da ideia do vazio que me corrompe e me entristece. A tristeza é uma grande amiga, mas sem as ilusões ela só é angústia. E uma angústia sem ilusões é somente uma ilusão de angústia.

Preciso ir. Não há mais espaço para mim aqui. Que nasçam outras bestas.

Gabriel C. Machado

O dia que o Filho de Júpiter precisou ir embora

18/06/2019 - 8:39 am.

Gabriel Cordeiro Machado
Enviado por Gabriel Cordeiro Machado em 18/06/2019
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