Às avessas
Sou o negror da noite sem luar,
As folhas rubras arrastadas pelo vento outonal,
A tristeza das vielas pobres com sua gente suja e desgraçada.
Sou a candura, os sentimentos nobres da gente pacata;
Sou o pensamento sujo dos degenerados,
A luxúria das prostitutas, a doçura das virgens,
O recalque dos despeitados, a paz de espírito dos justos,
A amargura dos rejeitados, a alegria dos que vivem bem.
Sou a fúria cega da natureza esfacelada em vendavais,
Temporais, enchentes, terremotos e furacões;
Sou a destruição, o desespero, o desmantelo,
O caos que tudo isso provoca.
Sou o desânimo estampado na cara dos infelizes,
O grito surdo e desesperado dos marginais da vida
Que habitam os inferninhos torpes e que buscam alento
Para suas desilusões na sordidez das drogas, da violência, do crime.
Sou a triste e desoladora visão dos charcos frios,
Ao pôr-do-sol, cheios do coaxar de rãs e pios dolentes de pássaros ;
Sou o vento que sopra impiedoso sobre os juncais
Que se envergam numa entrega masoquista.
Sou a violência das ondas que rebentam de encontro aos rochedos
Insaciáveis em sua fúria desvairada;
Sou o cio enlouquecido da cadela vira-lata - cavalo selvagem
Que corre de crina solta pelos prados da vida.
Sou a tatuagem desenhada com o sangue dos inocentes,
Das paixões desenfreadas, das traições descobertas e das vinganças mesquinhas.
Sou o fio da navalha que talha tua carne quente e macia,
O punhal de prata cravado no peito da amante infiel,
O ódio sangrento da mulher ciumenta que se descobre traída;
Sou o sangue que jorra do corpo do pai de família assassinado por engano,
Sou o pasmo inesperado diante do atroz engano.
Sou o cinismo do mentiroso, a frieza do criminoso,
A ansiedade do náufrago, a unha cravada em tua ferida aberta,
A agonia da mocinha violentada, o sofrimento delirante dos torturados;
Sou o gozo antecipado do estuprador, o prazer doentio do torturador.
Sou o baú empoeirado que guarda a sujeira de teu passado,
As lembranças desagradáveis de teus atos;
Sou a gargalhada assombrosa de teu remorso,
A cor cinza e inútil de teu arrependimento;
Sou a legião de fantasmas que povoam tua mente,
Que tira teu sossego e que te consome a vida.
Oliveira