Projeção astral
Meu estático aprisionamento tornou impossível o mais sutil dos movimentos. Os olhos se abriram, e eu vi a mim mesma a partir de outra perspectiva, invadida pelo sono místico. A inércia de meu corpo travava uma luta contra minha consciência viva e minha respiração ofegante. O desespero se apossou de mim, mas não vi anjos nem demônios, vi somente a mim, desperta e cochilante a um só tempo, enquanto uma procissão de pensamentos se apoderou de minha mente. E eu, que imaginava estar fora de minha pessoa, perdi a sanidade para o quase-delírio de minhas intuições existenciais. O vento das rápidas divagações desembocaram em uma só certeza: estou morta. Mas havia um elemento exalando vida deitado sobre mim: um gato adormecido e sereno. Meu olhar mirava a criatura que jamais compreenderia o esforço que eu fazia naquele momento. Comecei a sentir inveja do felino que tinha feito de meu corpo imóvel, seu assentamento. A qualquer momento, poderia se desencaixar de meu colo quente, e por algum momento, culpei seu egoísmo pelo roubo de meu vigor. Reuni todas as minhas faculdades físicas para movimentar um dedo do pé e tentei falar, mas gritei no silêncio. Em vão, pude ouvir apenas um ruído que o sono permite exprimir. A viagem de minha alma fugitiva durou a eternidade desesperadora de três minutos. Eu estava viva, meu corpo rígido tinha fome de retorno e de reencontro com seu princípio vital, em uma ânsia de vida. Era a respiração de uma falta de ar, estranhei tudo aquilo. Eu não estava sendo eu mesma, sentia um declínio de minha sensibilidade, tocava o extremo corpóreo ou a radicalidade da razão, me faltava a essencialidade daquilo que me tornava humana. Induzindo meu desejo pela volta, trazido pelo profundo apego à vida, me empenhei em restabelecer o fio entre as duas dimensões, para que meu espírito peregrino anunciasse seu regresso. Meu assombro introspectivo beirava a repercussão de meu estado no mundo externo, preocupando-me por todos que me vissem no jazigo paralítico. Concentrei-me fortemente em encontrar o caminho de volta, e tive a sorte de ter presenciado uma viagem tranquila, na quietude de minha vigília. Os papéis se inverteram, ao invés de visitas inoportunas do outro mundo, eu quis ser dab tsog de meu gato ronronante, mas tudo se dissipou, era tênue, nada parecia tão real e definitivo. Logo adiante senti um impulso bondoso em meu corpo, e uma sensação de alívio se apoderou de mim, como um andarilho no deserto que encontra um oásis para recuperar suas forças e seguir seu rumo. Assim despertei renovada, mas tão diferente do que eu era. Será que estou abrigando outra alma visitante e passageira? Posso ter a segurança de uma verdade somente: depois do ocorrido, aflorou em mim a inspiração para a intensidade de um viver que vislumbra a cada manhã, a raridade e a dádiva da vida.