Inércia
Todo corpo em repouso tende a permanecer em repouso, e todo corpo em movimento tende a permanecer em movimento, a menos que uma força atue sobre ele. O mesmo é válido para o modo como o ser humano costuma a despender sua existência: tudo tende a permanecer exatamente como se está, até que algum acontecimento que se apresente como modo de recordar a brevidade da vida se faça presente e nos tire do destino vicioso que impede a escolha genuína do ser que reluta em se firmar de fato existente. Uma grande perda ou um pequeno susto, apesar do extenso abismo entre a natureza de seus efeitos, guardam a mesma motivação, em igual valor no desvio do Homem de sua retilínea destruição, violenta, silenciosa e invisível. Não se trata de exagero ou de discurso cataclísmico e passageiro de quem está usufruindo da brilhantina de uma vida, a crueldade que se abate sobre aqueles que se deixam levar pelos ares da indiferença é real, porém imperceptível. É aí que reside o perigo do desencontro consigo, e da perda de si que se elabora no contato construtivo com o outro. É difícil romper as correntes das amarras de uma tão bem acolchoada zona de conforto. Não há explicações físicas que possam explicar a magnitude a ambivalência de que somos formados, posto que não nos resumimos a um pedaço de matéria ocupando lugar no espaço, temos a nosso favor, um elemento que nenhum outro objeto tem: o inconformismo com o fluxo das consequências que germinam a partir de nossos atos. Temos portanto, a possibilidade de negar o alienamento diante da aparente naturalidade do caminhar da vida, porém é errado supor que o modus operandi é sempre, inevitavelmente, o culpado. Somos condicionados, como espécie, a buscar uma estabilidade de nossas ações, em prol da sobrevivência, e a realizar as mesmas tarefas repetidamente, tendo um dia após o outro como um cronômetro. Se está na natureza humana e se contribui para o futuro da espécie, então por que seria tão nocivo assim viver em inércia? Porque já nos basta a inércia de viver de forma acostumada, com a ideia de que nossa essência primordial persistirá intocada apesar de tudo, porém a racionalidade, com seu devincilhável incômodo que nos insere a semente da ciência sobre os fatos, nos obriga como prova de relativa superioridade perante os demais seres, a agir decididamente. Quer dizer que ao viver como uma folha levada pelas correntezas de um rio, estaríamos desonrando o tempo de evolução que nos foi tão caro, no sentido mais bioquímico do termo? Talvez, porém a certeza não combina com pressa nem com a generalização. Além disso, a construção de um filtro capaz de bloquear os resquícios nos impostos inconscientemente, demanda um esforço significativo. Mas é importante estabelecer uma distinção nítida entre uma circunstância estável e livre de oscilações desgastantes, e um estado de doente ataraxia que remonta o estado de natureza selvagem, transposto no caso, não pela ausência de leis, mas pela inexistência de sensibilidade. Parece que a partir do momento em que se nasce, momento esse que que se repete em metáfora com o clarão de cada aurora, a reiteração do viver perde a noção de efemeridade à qual todos, sem exceção, estamos curvados, pensemos ou não em nosso fim. Por outro lado, o esquecimento e o viver inerte oferecem um livramento sobre o pensamento da morte, pois morre-se muitas vezes em pensamento antes da morte em vida, e em cada vã memória, um sofrimento hipotético e abstrato, tal qual a ideia de morte que a vida nos limita a ter antes do momento derradeiro. A regalia da inércia está aí, presenteando através da negação de um amanhã, que já recalca o hoje em função de um não-saber, sendo quase um palco de transcendência, um local de culto e em última análise, uma ânsia por algo que nunca chega, e encerra-se em si, cessa e segue sem rumo, sem freio, em um movimento uniforme na dimensão exata, sem coragem e sem medo: o ardor em condenação perpétua.