Virgulário
É estranho voltar a uma vida que se apoia no caos e faz das intrigas seu ponto de partida. Não estaria me contradizendo ao dizer que o início começa em um ponto? A resposta para aquilo que indago não é me dada com a facilidade de quem desce depois de subir. Se quero descobrir, preciso ir além das aparências, silenciando vozes que são externas a mim e abafam tudo aquilo que das profundezas sempre quis emergir. Vidas em letra maiúscula começam no mesmo ponto em que nascem os colóquios das mal-formatadas e desregradas, mas todas terminam em um ponto, que encobre com a irrelevância zombeteira, o restante da frase que lutamos para ser, com letras caprichadas e acentuações exatas. Então por qual motivo falamos em ponto de partida? se o ponto é um elemento indissociável a um fim? Ao fim do dia no ponto em que o sol visita outros caminhos, ao fim da sentença que pode não ter sentido, mas jamais lhe faltará o ponto. Pontos que exclamam não interrogam, mas ambos pontuam com a mesma precisão e cautela, um cético não dogmatiza preceitos, mas encerra suas frases com um ponto que exclama sem clamar, pois ainda desconhece a eternidade de uma vírgula.
O tropeço é o ponto final daquele que vê na dureza do chão, um bom quintal para seu descanso imperfeito, e é uma vírgula para aquele que sobrevive ao desgaste da queda ávida, como a granada surda que estoura no piso elástico e o eleva ao teto do mundo. Se o ponto é o ente terminador, como podemos conceber a vida como um hiato entre dois intervalos de inexistência alternadas de uma mesma natureza, obscura àqueles que guardam em si o dom de viver, e singela àqueles que neste momento experimentam a sensação da qual provamos por milhares e milhares de anos, mas que em poucos minutos fomos capazes de esquecer? Ouso dizer que a fatalidade de um ponto é incomparável aos poréns que a vírgula imprime, virgular é perigoso, é preparar o terreno para ciclos sem-fim de uma vida que começa e termina no ponto final melódico que passamos a vida compondo, apenas para apreciar a obra final no abismo do inexistir, acompanhados da saudosa criatividade que tivemos ao imaginar o que os bosques do além mundo nos reservaram.
Sempre há um resto de frase estancado pelo divertimento soturno do ponto que dança entre palavras e memórias. Às vezes, eles podem ser verdadeiros mestres na arte dos fins e finalidades. A simplicidade de sua norma nos ensina a reconhecer o que vale a pena ser levado adiante e o que deve terminar de uma vez por todas, longe da brandura de todo “contudo”, no acúmulo necessário do “com nada” mais para ser dito. Encerrar é enterrar. Toda frase termina, toda vida se põe em jazidas, mas os pontos não caem firmes sobre a terra bruta, as vírgulas se encarregam de abrir covas com sua haste magra. À medida que acrescentamos vírgulas à vida que nos dispomos a levar e a conscientemente encerrar, abrimos derradeiros sulcos cada vez mais profundos para o conforto do grânulo final. Há mais esperança escondida na vírgula do que no ponto, sem sombra de dúvida que a morte é, há do mesmo modo, um amanhã no mais simbólico dos pontos com os quais presenteamos o solo fértil: as três sementes também são pontos que escondem a vírgula dos floreios primaveris. Ou seriam reticências?