Velório de D. Morte
Chegavam afoitos, vestindo o luto apressado cuja morbidez refletia a leveza de um velório incomum. Chegou o dia em que o sofrimento da morte se dissiparia, as últimas e derradeiras lágrimas cairiam sobre aquele véu exalando flores, e a dor seria enterrada com todo o remorso de sua grande causa alastrada pelo mundo, em cada canto de vida infiltrada. A solenidade com que se fazia a despedida daquela com quem encontramos assim que anunciamos nosso mais ardil “adeus” para a vida que se encerra, agitou a vida com a repentina alegria angustiante de uma vida sem fim e sem fins. A atmosfera em torno daquele caixão desbotado, guardado há muito, à espera da mais feliz das mortes, era de festa disfarçada em trajes negros. Entre uma lágrima de saudade e uma de esperança, entrecortavam-se sorrisos de uma timidez ousada, que resplandeciam os anseios das almas cheias de vida. Foi-se aquela que já levou mais corações do que todos os corpos que hoje vagam pela Terra, e não se pode saber o motivo do fim de todos os fins, circulam boatos de suicídio, mas eu desconsidero essa possibilidade, pois para que sobressaia a autodeterminação de morte, é necessário no mínimo uma boa dose de vida e de todos os pessimismos, prazeres e incongruências que dela emana. Matar a morte é uma audácia de quem a venceu e que está além da vida, ou incorporado a ela, jamais de alguém impregnado de cicatrizes que tornam o viver uma tarefa penosa e farta. Assassinato? Talvez. Quem se atreveria? Alguém que pouco pondera os efeitos de sua atitude a longo prazo, e acrescente longo nisso, o fardo da eternidade é mais severo para toda fonte de memória. O que mais importa agora não é saber quem arrancou o ponto final de toda história, mas sim o que poderemos esperar da vida daqui em diante, se é que ainda podemos chamar de vida o que se sucederá, na monotonia de um ir e vir sem perspectivas de acabar. É duro lidar com a morte, mais difícil ainda não é sobreviver ao mundo sem ela, destituído de um ciclo certo, mas sim reaprender a viver sem o ente fundamental à vida e indissociável dela. O que nos consola é que continuaremos morrendo em vida, seja de amor, de ciúmes, e de saudade, saudade do fim. Todos despertarão um dia, desse sonho que hoje os banha com cantigas de uma vida eterna, para a realidade de que o real é passageiro, e o infinito de uma vida, passa longe de uma dádiva, lembrarão da tarde que os trouxe o sintético aroma da felicidade em forma de uma sepultura rígida em meio às folhas tremulantes pelo vento do eterno amanhã. A existência se tornará irrelevante, teremos que conviver com a sombra de um passado agraciado pela morte, que teve tempo de ficar para trás, não teremos o poder de desvendar todos os mistérios que nos rondam, o invólucro da intriga e o pesar de se encantar com o mundo, cairão por terra como areia se esvaindo em farelos pelos dedos, como mentes impedidas de pensar além e corações duvidosos de seu sentir.