Rua sem saída

Que falta me faz a rua do bairro de minha juventude, os canteiros sorrriam flores alegres ao meu coração esperançoso e as casas se alinhavam no sonho certo de um futuro. Naquele tempo o mundo funcionava, os pássaros cantavam e eu caminhava sempre em frente, havia pouco passado que eu pudesse contemplar. Passei horas sentado na calçada à espera de grandes novidades, sedento por aventuras, espiei as janelas mais secretas em busca de mistérios. A época era fecunda para os amores que iam e vinham, peregrinando meus sentidos e carregando um pouco de mim ventos afora. A rua não tinha fim, mas a vida tinha, e eu não gosto de lembrar disso, mas às vezes me pego pensando, apenas para não esquecer o que é viver. A rua era curta para um homem do mundo como eu, e muito estreita para quem tem sonhos que não cabem em si, eu queria descobrir a imensidão do viver, mas receava em conhecer o fim da rua, o beco que escancara o fim da linha, o ponto sem retorno na madrugada escura. Sempre quis transformar a ruela na avenida de meu ser, quis enxaguar a terra, transformá-la em uma ponte entre o que é e o que virá, quis incorporá-la a mim, não era só uma rua na qual trafegam lembranças, era o livro aberto e ladrilhado em que cravei o que sou, ou que pelo menos acreditava ser naquele poente em que fiz meu pacto com ela. A rua só tem uma direção, nunca aprendeu a retornar, mas ao menos tentou perfumar a jornada com suas sutilezas singelas que conforta todo coração. A cada passo, algo é deixado para trás, a cada metro, uma memória se dissipa, a cada tropeço os joelhos se desgastam, aos poucos as pernas cansam e o corpo desgasta, desgosta e desaba. Posso olhar para trás, breves olhares a ruazinha permite e até incentiva, pois sabe que às vezes é preciso colher ensinamentos que estão guardados com o tempo que já se foi, para que continuemos a marcha com um olhar um pouco mais sábio do que com aquele que tínhamos quando iniciamos. Só conheceria plenamente o fim de minha rua, quando eu encarasse sem medo o destino inevitável, sempre aberto, minha rota de colisão alcançada pela tarefa que minhas pernas desempenharam toda a vida: a caminhada em direção ao fim. Eu já sabia que a rua não terminava em uma estrada movimentada, assim como os rios que deságuam no mar. Aquela vereda incompreendida é silenciosa, é fosca e brilhante ao mesmo tempo, é menos hermética do que a forma como nossos olhos se acostumaram a vislumbrá-la e imaginá-la. Antiguidades e civilizações inteiras passaram por suas ruazinhas brandas ao encontro da saída inexistente e do fim que está espreitando logo ali, povos se embrenharam por trilhas laterais na tentativa de fugir dela, mas todos os caminhos desembocam no inexplicável. O único incompreensível sobre o qual temos nossa maior certeza: a de um fim, já nos levou a fantasiar no chão, a parar o fluxo e criar entidades divinas, quero um dia voltar e perguntar à ruela, se ela ainda ri de nossas piadas instigantes ou se tanto como nós, ela tem muito a nos dizer. Como um marujo no mar de minhas vivências, sonho em encontrar um porto em seu final, que me conduza em um pequeno e solitário bote de reflexão, rumo a eternidade paradisíaca que se esconde para além do fim do mundo. É fácil ler endereços e nomes de ruas, mas esta guardava sons melódicos ao invés de letras, e seres de todos os tipos ao invés de números, nomeá-la é uma tarefa que cabe somente a quem marca seus rastros nela. Eu batizei-a de rua da vida, e ela é rara e insubstituível.

Flora Fernweh
Enviado por Flora Fernweh em 11/08/2020
Reeditado em 12/08/2020
Código do texto: T7032620
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